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IN "VISÃO"
19/07/19
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A borboleta
Não sei se reparou, Marlene, que tratamos de Recursos Humanos. E sempre de olhos baixos, ironizou: Humanos, está a perceber? Borboletas, não são da nossa competência. E mandou que se pulverizasse a sala com um inseticida. Desses inodoros, acrescentou. Em pânico, Marlene fingiu acatar a ordem
No escritório da multinacional, num décimo quinto andar da capital,
surgiu uma borboleta. Estava pousada no microfone da sala de reuniões. A
secretária Marlene aproximou-se com infinita cautela, sentou-se numa
das cadeiras da sala vazia e permaneceu imóvel durante longos minutos.
Olhou em contraluz para as asas coloridas e achou que estava em presença
de uma mensageira. Usou o seu telefone, fotografou o inseto, editou a
imagem para realçar as cores e enviou-a para umas tantas amigas.
Procurou
no Google o oculto sentido daquela aparição. Uma página da net fornecia
uma longa lista dos significados espirituais das borboletas. Renovação,
recomeço e anunciação eram os mais comuns. Uma outra página era mais
apelativa: Você sabia que os Anjos se comunicam frequentemente connosco através das borboletas?
Marlene filmou o eventual anjo que permanecia hirto no poleiro
metálico. Procurou outra página e então, sim, encontrou algo que a
deixou tão paralisada quanto a borboleta. Aquela criatura trazia o mais
esperado dos recados: o da fertilidade. Há anos que Marlene esperava
engravidar. E ali estava, na mais delicada criatura, o anúncio da boa
nova há tantos anos esperado. Mais entusiasmada que Marlene apenas a
Virgem Maria ante o Arcanjo Gabriel.
Por fim, a secretária fez o que dela profissionalmente se esperava:
comunicou a aparição ao seu superior, o Diretor de Recursos Humanos. O
marido de Marlene, o Osório, há meses desempregado, irrita-se sempre que
ela lhe fala do seu local de trabalho. Recursos Humanos?, pergunta o
marido. Prefiro o desemprego a ser tratado como “recurso”. Osório reage
assim por despeito, pensa Marlene. Lá em casa ela era a chefe de
família. E a raiva do marido cresce: um homem não foi feito para esperar
pela mulher. E um casal não foi feito para desesperar por um filho.
O
diretor não levantou os olhos do computador. E assim manteve Marlene na
habitual invisibilidade. Não sei se reparou, Marlene, que tratamos de
Recursos Humanos. E sempre de olhos baixos, ironizou: Humanos, está a
perceber? Borboletas não são da nossa competência. E mandou que se
pulverizasse a sala com um inseticida. Desses inodoros, acrescentou. Em
pânico, Marlene fingiu acatar a ordem. E já fechava a porta quando o
diretor se ergueu, atacado por súbita preocupação.
– Onde é que está a mariposa?
– É uma borboleta. Está na sala de reuniões.
Marlene
acompanhou a acelerada marcha do chefe ao longo do corredor. As
borboletas fecham as asas por cima do corpo, foi explicando enquanto
caminhava. As mariposas deixam-nas ao lado do corpo, como um avião.
O
diretor irrompeu ruidosamente pela sala de reuniões e espreitou de
longe a impávida borboleta. Rodou pela mesa, tirou fotografias de
diversos ângulos. Ligou-se à internet e procurou: “Doenças provocadas
por borboletas”.
Em poucos segundos, sentenciou:
– Chame imediatamente a responsável do DHS.
– Quem?
– O Departamento de Health and Safety!!!
Marlene
sabia: naquela empresa, em momentos decisivos, as pessoas eram
designadas em inglês. Como se, em português, valessem menos.
– Vá chamá-la, agora.
Mesmo
em português, a ordem era sumária e perentória. Suspeitando da
gravidade do que se seguiria, Marlene ainda ousou contestar.
– O que passa, doutor? É uma simples borboleta.
– Pousada no microfone onde as pessoas falam?
Marlene
foi para o seu gabinete e ligou para o DHS. Depois, reabriu a página
que antes consultava no computador. Procurou “Os mais belos versos sobre
borboletas”. E abriu um poema chamado “Jardim”. E leu em voz baixa:
Se eu tivesse jardim
seria para semear borboletas.
seria para semear borboletas.
Limpou
uma imaginária lágrima, ajustou o vestido ao ventre que já adivinhava
em redondez lunar. De volta à sala de reuniões, encontrou a responsável
de Saúde e Segurança, recebendo instruções do diretor de Recursos
Humanos.
– Ouviu falar da epidermólise bolhosa, também chamada doença da borboleta?
– Nunca ouvi falar disso.
– Fica-se com a pele tão frágil como as asas de borboleta.
– Gostava de ter asas de borboleta. Amarelas como essa que aí está pousada.
–
Não brinque com coisas sérias, doutora. Com essa doença, as pessoas
deixam de poder usar sapatos, só podem usar roupas especiais. A pele
rompe-se ao menor atrito. Morre-se antes dos trinta.
– Que horror!
– Proceda a uma avaliação de riscos. Consulte o procedimento A-34.
– Mas, diretor, a tal doença... tem a certeza de que é transmitida por borboletas?
– Foi o que vi no Google. É sua função confirmar isso, doutora.
Marlene
entrou na sala acompanhada por uma empregada de limpeza. O que vão
fazer, perguntou o diretor. Vamos abrir a janela e enxotá-la, respondeu a
empregada de limpeza. Nada disso, argumentou o diretor. Vá é buscar o
aspirador, e fazemo-la desaparecer enquanto o diabo esfrega um olho.
Marlene
levou as mãos ao peito angustiada em imaginar o seu Arcanjo Gabriel a
desaparecer no ventre escuro de um aspirador. Deu um safanão no
microfone e a borboleta ergueu voo em direção às paredes de vidro da
sala. Marlene entreabriu a janela envidraçada para que o bicho pudesse
escapar.
Mas a borboleta deu meia-volta e voou na direção oposta. Pousou
num quadro na parede do lado oposto. O quadro chamava-se “O céu”. Havia
naquela tela uma nesga de azul sobre prédios, antenas e fumos. Mas era
um azul vindo de dentro, uma cor que apenas o pintor sabia existir. A
borboleta tinha escolhido o seu pouso definitivo. O céu que restava lá
fora era demasiado escasso para voar. E demasiado sujo para morrer.
Nesse
final de tarde, Marlene regressou a casa sem peso, como se não houvesse
chão. E caminhou como se tivesse asas. Talvez fosse a tempo de
surpreender Osório acordado. Talvez o marido descobrisse nela o mesmo
céu que a borboleta encontrara na tela.
IN "VISÃO"
19/07/19
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