Não é uma data importante, não me lembro de factos marcantes a não
ser o fim das aulas, daquele alívio, do fim do despertador a tocar logo
de manhã e do autocarro cheio. O último dia de aulas acabava cedo, quase
sempre com uma festa da 100ª lição e os singles da moda a tocar um
gira-discos portátil. E todos estavámos com a cabeça nas férias,
eufóricos, não havia a gorda, o caixa-de-óculos, o galã e a miúda gira,
mas um punhado de miúdos a abanar-se ao som da música pop do anos 80.
Íamos
todos ter saudades, mas só lá mais para o fim de Agosto, quando chegava
o tédio da praia e de dormir até tarde. As festas do fim das aulas,
depois de termos despachado os pontos todos (os pontos eram os testes,
mas ninguém dizia testes ou fazia testes, nós tínhamos pontos), estavam
envoltas em alguma nostalgia, quase sempre havia uns namoricos, daqueles
à moda antiga. Ele muito vermelho e ela também, os dois a conversar
baixinho ou dos outros, em que ele se fazia de engraçadinho e ela de
difícil.
A menos que fossem vizinhos porta com porta, nenhum
daqueles “flirts” sobreviveria às férias. Nós íamos para as nossas
casas, viver as nossas vidas e isso era quase como viajar para outro
país. Ou pelo menos eu tinha essa impressão, quando subia para o
autocarro e deixava para trás a cidade, as aulas, aquele ambiente onde, a
cada ano lectivo, aprendia muito mais do que a matéria. Nos intervalos,
ouvia tudo o que diziam as outras sobre o que se devia ler, a música
que valia a pena, os filmes obrigatórios e todos os palpites de roupa e
sapatos.
Quando a porta da escola fechava, nada nos mantinha
ligados, nem mesmo os telefones que, nos anos 80, dormiam silenciosos
nos corredores das casas, em cima de uma mesa comprada de propósito e
com lugar para a lista telefónica e uma agenda bonita. Eu ainda
partilhei o meu número com algumas pessoas, mas além das amigas mais
próximas, ninguém achou graça a ter conhecimentos no Laranjal. Não era
um lugar muito cotado e eu dava muitas negas, não podia ir a matinés na
discoteca ou a festas de anos. A minha mãe não permitia voos para lá do
Lido, do cinema da sessão das quatro e meia e dos encontros de jovens da
paróquia.
E o fim do ano lectivo tinha assim um sabor a fim de
festa, a última oportunidade para dizer ou fazer saber, para perceber
que aquele tolo, com ares de engraçadinho, que troçou dos sapatos, da
roupa, do cabelo e trocou bilhetinhos com meia turma, afinal tinha uma
paixoneta pela miúda a quem nunca ligou. Até os tímidos se revelavam,
quase sempre mais corajosos que todos os outros, quando davam as mãos e
dançavam slows alheados das piadas e risadinhas. E lembro-me de como
nunca me parecia real quando dava por mim no centro de uma dessas
histórias, sem perceber de que maneira um rapaz podia perder mais de
dois segundos a olhar para mim.
A parte boa – que era também a
parte má – era a certeza que tinha três meses de férias e que a comida
era boa. Havia sempre bolos e pudins nas festas, feitos pelas
professoras e pelas alunas mais prendadas, das que trocavam receitas e
falavam da cozinha com à vontade de especialistas. Sei que foi num
desses convívios, com música a tocar e pares a cochichar, que percebi
que se podia fazer mousse de pitanga e que era boa, de repetir e repetir
e só parar por vergonha. Nessa altura já eu tinha percebido que a
escola era mais do que a matéria. Na escola contavam os intervalos, as
vezes que tínhamos feriado, o caminho que se fazia até à paragem do
autocarro, as paixões escondidas, os comentários maldosos e aquelas
festas, que tiravam tudo a limpo e nos mandavam para as férias grandes
sem pesos na alma.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
30/06/19
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