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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
22/05/19
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As palavras (são e) não são
como as cerejas
Ah, as cerejas. As cerejas, fruto plural, as cerejas, suculentas com o
seu suco lento, as breves cerejas bravas, bravias, a sua vocação de
fruto numa estação de flores. As cerejas na primavera, estação onde hoje
quase ninguém para, quase ninguém repara, no seu caminho desejoso do
verão.
As
cerejas contemporâneas do florir dos jacarandás, do lilás que a flor
dos jacarandás traz, uma bebedeira de cor a manchar a cidade. As praças e
ruas, que conhecemos de cor, lilasmente floridas sob os céus azuis que
se estendem pelo cair das noites que hão de ser de junho antes de serem
de verão.
O sabor da cereja e a visão da flor do jacarandá, uma celebração do agora no agora.
O contrário da linguagem que é sempre uma celebração do antes ou do depois. Do que não está. Ainda que não esteja por pouco.
A
palavra cereja evoca a cereja mas não é uma cereja. "Isto não é uma
cereja", como dizia Magritte sob(re) o desenho de um cachimbo, que não
era um cachimbo.
Na literatura, como no cinema, os anjos invejam,
desejam, ter um corpo como os humanos, para poderem sentir, saborear,
cheirar, morder.
Vagueiam suspensos pela literatura dos lugares na sua invisível vigília
das almas temporárias que habitam os corpos. Anjos para sempre ancorados
à escuta dos destinos secretos dos humanos, que é o nome que eles dão
ao errar de cada um de nós pelos múltiplos jardins das histórias.
Sonharão os anjos com o sabor das cerejas? Sonharão eles com o sabor que nunca poderão saber? O saber de saborear.
Pessoa
sonhava na voz de Álvaro de Campos "sentir tudo de todas as maneiras",
ser um corpo múltiplo de sensações, "realizar em si toda a humanidade de
todos os momentos".
Ou na existência paradoxal de Alberto Caeiro:
"Creio no mundo como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele
(...) Eu não tenho filosofia: tenho sentidos..."
Metafísico pastor, sonhando ser aquilo que a sua linguagem, no momento em que ele fala, nega.
O sonho do anjo é o sonho último da linguagem: ser o real do real.
Das
cerejas, como das flores dos jacarandás, no resto do ano, quando nem
umas nem outras há, ficamos outra vez com o seu depois e com o seu
antes.
Um ano inteiro a desejá-las de novo ou a lembrar o seu sabor, na companhia dos anjos da linguagem.
Dizem
que as nossas memórias dependem da capacidade de inscrição que têm no
nosso cérebro, e que essa capacidade depende do número de conexões que
cada determinada memória despertar.
Se eu tenho uma memória de
cerejas associada, digamos, a uma memória de Lisboa e a outras de maio,
jacarandás, namoros, noites de verão, juventude, liberdade... cada uma
delas uma memória de um episódio associado a cerejas, é possível que
venham a ser memórias duradouras porque cada vez que se recorda um
desses tópicos, cada vez que se ilumina uma dessas informações
arquivadas, as outras possam ser por associação lembradas e essa memória
composta seja ativada e fortalecida.
Contudo, ao ativarmos a
memória das cerejas por essa outra entrada, que não necessariamente seja
cerejas, digamos, por exemplo, jacarandás, ou juventude, estamos a
acrescentar informação que vem alterar a memória inicial. A memória das
cerejas passa a estar mais associada a jacarandás e juventude do que
antes estava.
Ou seja, com o tempo, nunca se regressa à memória
que se tinha, a memória é sempre uma revisitação de outro lugar, um
pouco diferente do lugar onde antes tínhamos estado, a memória é sempre
uma invenção.
As cerejas que lembramos são sempre umas cerejas que
sonhamos lembrar. Saboreá-las é sempre irrepetível. É sempre outro o
tempo das cerejas depois do tempo das cerejas.
Revivê-lo é impossível. Tão impossível como viver depois o já do jacarandá.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
22/05/19
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