28/04/2019

RUTH MANUS

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Uma doença chamada smartphone

As pessoas perderam completamente a noção do que é e do que não é urgente. Perderam a noção do que é horário de trabalho e do que é horário de descanso. Perderam, sobretudo, a noção de presença.

Telemóvel. Celular. Telefone. Smartphone. iPhone. Galaxy. Não importa o nome nem o modelo. O que importa é a nossa, cada vez mais latente, incapacidade de nos desgrudar desses aparelhos. Não venho aqui dar lição de moral para ninguém. Muito pelo contrário, eu sou um exemplo típico desta epidemia que se espalha no século XXI.

Houve um tempo em que os telefones tinham fios que os prendiam às paredes. Agora os telefones têm fios invisíveis que nos acorrentam a eles. Não, não é fácil. Dentro daquele pequeno aparelho estão- em tese- os nossos amigos, a nossa família, o nosso trabalho, a nossa vaidade e os nossos refúgios. É mais do que tentador.

Lembro-me do dia em que fui fazer uma palestra sobre produção escrita e organização acadêmica para os estudantes que iniciavam seus mestrados e doutorados na Faculdade de Direito da Universidade Lisboa. Disse a eles que era muito importante que, nos momentos em que eles fossem ler, pesquisar e redigir teses e dissertações, eles desligassem o wi-fi e o 3G dos seus smartphones para não serem interrompidos.

As caras deles foram de tamanho assombro, que parecia que eu tinha dito para eles comerem o iPhone com sal e azeite. Um deles me disse “mas professora, eu não posso ficar incomunicável”. Eu, na sequência, respondi “você não está incomunicável. Aquilo é um telefone. Se for muito urgente, as pessoas podem te ligar.”. Foi nesse momento que percebi que muita gente já nem se lembra que aquilo é um aparelho telefônico.

As pessoas perderam completamente a noção do que é e do que não é urgente. Tanto as que perguntam como as que respondem. As pessoas perderam a noção do que é horário de trabalho e do que é horário de descanso. As pessoas perderam, sobretudo, a noção de presença. Estar fisicamente num lugar, mas mergulhado no seu telefone, é a mesma coisa que estar ausente.

Vi um vídeo no qual um pesquisador falava da simbologia que existe em estarmos numa refeição com outra pessoa e deixarmos o smartphone em cima da mesa. Há um discurso claro ali: “eu não estou integralmente nesse encontro. Estou com você, mas há coisas mais importantes. Estou aqui, mas boa parte de mim está em outro lugar.”. Sim, nós temos que deixar o aparelho na bolsa. No bolso. Em qualquer lugar que não seja ali, imperativo e tentador. Eles nos chamam, se for necessário. Eles vibram e tocam, lembra?

Quantos e quantos pais ouvem seus filhos pedirem seus smartphones emprestados a toda hora? E por que é que eles fazem isso? Porque é exatamente o que eles presenciam o tempo todo. A nossa ausência- frequentemente do pai e da mãe ao mesmo tempo- mexendo no telefone, mesmo que rapidinho, mesmo que no carro, mesmo que antes de dormir. Se eles nos observam fazendo isso, como poderia ser diferente?

Perdemos completamente o limite. O tempo que poderia ser dos livros é das telas. O tempo que poderia ser do esporte é das telas. O tempo que poderia ser de brincadeiras com as crianças é das telas. O tempo que poderia ser de conversas com os pais e avós é das telas. O tempo que poderia ser do casamento é das telas. Nós sempre encontramos uma desculpa: é uma coisa do trabalho, é a mensagem para uma amiga que não está bem, é só uma pesquisa no google, é só pra ver a previsão do tempo, é só pra checar o e-mail. Não tem fim.

Precisamos repensar essa nossa relação. Saber deixar o telefone no quarto enquanto estamos na sala com a família. Resistir à tentação de deixá-lo sempre a postos, com mensagens pipocando na tela. Mostrar para as pessoas que estamos efetivamente com elas, sem interrupções externas. Nem tudo é urgente. E o que é verdadeiramente urgente, liga ou nos encontra de outra forma. Mas nada é mais urgente do que a nossa presença integral com quem importa de verdade.

IN "OBSERVADOR"
27/04/19

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