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IN "OBSERVADOR"
27/04/19
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Uma doença chamada smartphone
As pessoas perderam completamente a noção do que é e do que não é
urgente. Perderam a noção do que é horário de trabalho e do que é
horário de descanso. Perderam, sobretudo, a noção de presença.
Telemóvel. Celular. Telefone. Smartphone. iPhone. Galaxy. Não
importa o nome nem o modelo. O que importa é a nossa, cada vez mais
latente, incapacidade de nos desgrudar desses aparelhos. Não venho aqui
dar lição de moral para ninguém. Muito pelo contrário, eu sou um exemplo
típico desta epidemia que se espalha no século XXI.
Houve um tempo em que os telefones tinham fios que os prendiam às
paredes. Agora os telefones têm fios invisíveis que nos acorrentam a
eles. Não, não é fácil. Dentro daquele pequeno aparelho estão- em tese-
os nossos amigos, a nossa família, o nosso trabalho, a nossa vaidade e
os nossos refúgios. É mais do que tentador.
Lembro-me do dia em
que fui fazer uma palestra sobre produção escrita e organização
acadêmica para os estudantes que iniciavam seus mestrados e doutorados
na Faculdade de Direito da Universidade Lisboa. Disse a eles que era
muito importante que, nos momentos em que eles fossem ler, pesquisar e
redigir teses e dissertações, eles desligassem o wi-fi e o 3G dos seus
smartphones para não serem interrompidos.
As caras deles foram de
tamanho assombro, que parecia que eu tinha dito para eles comerem o
iPhone com sal e azeite. Um deles me disse “mas professora, eu não posso
ficar incomunicável”. Eu, na sequência, respondi “você não está
incomunicável. Aquilo é um telefone. Se for muito urgente, as pessoas
podem te ligar.”. Foi nesse momento que percebi que muita gente já nem
se lembra que aquilo é um aparelho telefônico.
As pessoas perderam
completamente a noção do que é e do que não é urgente. Tanto as que
perguntam como as que respondem. As pessoas perderam a noção do que é
horário de trabalho e do que é horário de descanso. As pessoas perderam,
sobretudo, a noção de presença. Estar fisicamente num lugar, mas
mergulhado no seu telefone, é a mesma coisa que estar ausente.
Vi
um vídeo no qual um pesquisador falava da simbologia que existe em
estarmos numa refeição com outra pessoa e deixarmos o smartphone em cima
da mesa. Há um discurso claro ali: “eu não estou integralmente nesse
encontro. Estou com você, mas há coisas mais importantes. Estou aqui,
mas boa parte de mim está em outro lugar.”. Sim, nós temos que deixar o
aparelho na bolsa. No bolso. Em qualquer lugar que não seja ali,
imperativo e tentador. Eles nos chamam, se for necessário. Eles vibram e
tocam, lembra?
Quantos e quantos pais ouvem seus filhos pedirem
seus smartphones emprestados a toda hora? E por que é que eles fazem
isso? Porque é exatamente o que eles presenciam o tempo todo. A nossa
ausência- frequentemente do pai e da mãe ao mesmo tempo- mexendo no
telefone, mesmo que rapidinho, mesmo que no carro, mesmo que antes de
dormir. Se eles nos observam fazendo isso, como poderia ser diferente?
Perdemos
completamente o limite. O tempo que poderia ser dos livros é das telas.
O tempo que poderia ser do esporte é das telas. O tempo que poderia ser
de brincadeiras com as crianças é das telas. O tempo que poderia ser de
conversas com os pais e avós é das telas. O tempo que poderia ser do
casamento é das telas. Nós sempre encontramos uma desculpa: é uma coisa
do trabalho, é a mensagem para uma amiga que não está bem, é só uma
pesquisa no google, é só pra ver a previsão do tempo, é só pra checar o
e-mail. Não tem fim.
Precisamos repensar essa nossa relação. Saber
deixar o telefone no quarto enquanto estamos na sala com a família.
Resistir à tentação de deixá-lo sempre a postos, com mensagens pipocando
na tela. Mostrar para as pessoas que estamos efetivamente com elas, sem
interrupções externas. Nem tudo é urgente. E o que é verdadeiramente
urgente, liga ou nos encontra de outra forma. Mas nada é mais urgente do
que a nossa presença integral com quem importa de verdade.
IN "OBSERVADOR"
27/04/19
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