12/03/2019

ALFREDO BARROSO

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Um mundo
sobrelotado de imbecis

Os imbecis enchem o mundo e são perigosos. Como a História, sobretudo a do séc. XX, insiste em recordar. Todavia, esta é uma sociedade em que a memória se esfuma num ápice e o prazer narcísico se insinua nos ecrãs dos televisores e dos smartphones

Estudada nos livros e vista de dentro e de fora, como tenho podido vê-la, é uma evidência que a política implica, desde tempos imemoriais, elevadas doses de cinismo e hipocrisia. Mas também implica, pelo menos em democracia, limitações para além das quais ela se degrada irremediavelmente. Bem mais problemática é, todavia, a proliferação de imbecis na política, que logram tomar conta dela e conquistar o poder, atingindo extremos nunca imaginados pelos mais desatentos. Os políticos cínicos e hipócritas são, regra geral, tipos inteligentes, embora por vezes sem escrúpulos. Já os políticos imbecis são isso mesmo: imbecis. E é sobre eles que tenciono escrever a seguir.
“A cólera dos imbecis enche o mundo.” Quem escreveu repetidamente esta frase, como se ela fosse um refrão, foi um grande escritor francês – George Bernanos (1888-1948) – num admirável documento humano escrito e publicado em 1938, intitulado “Os grandes cemitérios sob a Lua”, sobre o episódio histórico considerado um trágico preâmbulo da ii Guerra Mundial: a Guerra Civil de Espanha (1936-1939).
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George Bernanos era tido como um homem de direita, conservador e católico. Nem por isso deixou de ser um dos primeiros intelectuais a denunciarem as atrocidades cometidas durante essa guerra civil desencadeada por cinco generais fascistas, com a bênção dos bispos da Igreja espanhola, católica apostólica romana, que a consideravam como uma “cruzada”. Entre esses cinco generais depressa emergiria Francisco Franco, dado que os outros quatro imbecis – Sanjurjo, Mola, Fanjul e Goded – morreram prematuramente, os dois últimos fuzilados por alta traição e os dois primeiros vítimas de acidentes aéreos, um deles ocorrido por cá, em Cascais, na Quinta da Marinha.
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Abro aqui um parêntesis para aludir à personalidade de George Bernanos, perfeitamente enquadrável na excelente definição da personalidade da escritora Agustina Bessa-Luís, dada pela sua biógrafa Isabel Rio Novo numa curta entrevista ao “Expresso” feita por Inês Maria Meneses. Tal como Bernanos, Agustina ter-se-á regido sobretudo por convicções, e não por ideologias. Como disse a sua biógrafa: “Escapou sempre a qualquer tentativa de aprisionamento ideológico e pautou-se por uma grande independência ética e estética. Em tudo a descobri desalinhada.” O mesmo se diga de Bernanos.
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Referindo-se genericamente à cólera dos imbecis que enche o mundo, George Bernanos avisava os católicos: “O vosso erro profundo consiste em acreditar que a estupidez é inofensiva, que há pelo menos formas inofensivas de estupidez.” Todavia: “A estupidez não terá mais força viva do que uma caronada de 36 (peça curta de artilharia naval) mas, uma vez em movimento, arrasa tudo.” E acrescentava: “Nenhum de vós ignora do que é capaz o ódio paciente e vigilante dos medíocres e, contudo, lançais a sua semente aos quatro ventos!” Realçando também a “monstruosa capacidade de embrutecimento” da estupidez, Bernanos recordava: “Napoleão vangloriava-se, em Santa Helena, de ter tirado proveito dos imbecis. Mas foram os imbecis que acabaram por tirar proveito de Napoleão. Não só, como poderíeis julgar, por se terem tornado bonapartistas. Mas também porque a religião do Grande Homem, adaptada ao gosto das democracias, originou um patriotismo néscio que ainda age poderosamente sobre as suas glândulas, e que os antepassados jamais conheceram.” Esse “patriotismo néscio” caracterizava-se, segundo Bernanos, por uma “cordial insolência, com índole de ódio, dúvida e inveja”.

“Foi uma imprudência louca ter desenraizado os imbecis”, lamentava o escritor. A seu ver, “o imbecil é, antes do mais, um ser de hábitos e ideias preconcebidas”. Entretanto: “A vida moderna não se limita a transportar imbecis dum lado para o outro. Mistura-os com uma espécie de furor. Gigantesca máquina que trabalha à máxima velocidade, engole imbecis aos milhares e espalha-os pelo mundo fora, ao sabor dos seus enormes caprichos.” Ora: “Nenhuma outra sociedade terá feito, como a nossa, um consumo tão prodigioso desses infelizes.” E assim continuará a ser, per omnia secula seculorum.

Esta progressão tão rápida e devastadora de imbecis não seria possível sem o contributo activo de um jornalismo cada vez mais dependente, medíocre e tendencioso, impregnado por uma “cultura do narcisismo”, que é a marca das sociedades contemporâneas. É olhar para a TV e vê-los a toda hora em todos os canais, a falar sobre tudo e mais alguma coisa – sejam eles (ou elas) políticos, jornalistas, comentadores, apresentadores, aprendizes de feiticeiro, peritos disto e daquilo, cozinheiros e outros bichos mais.

Amanhã ou depois, já ninguém se lembrará do que eles disseram – se calhar, nem eles próprios! –, mas falam, falam, falam, à vontade ou titubeantes, agressivos ou deprimidos, insolentes ou manhosos, didácticos ou joviais, de perna traçada ou cotovelos na mesa, a cruzar os dedos ou a agitar as mãos sem parar, de pálpebras semicerradas ou sobrolhos carregados. Uns a julgar-se espirituosos, outros com desconforto, outros ainda tentando mostrar competência, quase todos enfáticos, prolixos e enfatuados, procurando “descer” até às massas ignaras, para as fascinar e persuadir com palavras fúteis, ou exaltar com gritinhos histéricos, ou ludibriar com promessas vãs, apelando ao lado mais irracional das multidões. Mas estas, quando se enfurecem, são tão destrutivas como aqueles micróbios que activam a dissolução dos corpos debilitados e dos cadáveres.

Os imbecis enchem o mundo e são perigosos. Como a História, sobretudo a do séc. xx, insiste em recordar. Todavia, esta é uma sociedade em que a memória se esfuma num ápice e o prazer narcísico se insinua nos ecrãs dos televisores e dos smartphones. Ambos proporcionam instantes de glória efémera que os narcisistas almejam. Para os que não passam na TV, uma selfie basta, com um artista da bola ou um Presidente da República, para confortar o ego e crer que a salvação está ao alcance da mão. E, entretanto, Trump, Putin, Kim Jong-Un, Maduro, Guaidó, Bolsonaro, Duterte, Erdogan, Orbán, Kaczynski, May, Salvini e tantos outros ameaçam um mundo sobrelotado de imbecis…

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11/03/19

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