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IN "DELAS"
29/01/19
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A Insustentável Leveza do Ser
Escrevo estas linhas no ar,
a sensivelmente 11 000 de altitude, altura a que os aviões comerciais
se mantêm em velocidade de cruzeiro pois aí gastam menos combustível
porque o ar se torna menos denso e por isso oferece menor resistência.
Adoro voar. Ao contrário da maior parte das
pessoas que conheço, sinto-me muito mais relaxada no meio das nuvens do
que numa autoestrada, nunca tive medo de andar de avião nem de subir a
montanhas altas e olhar cá para baixo, nem de espreitar do topo dos
arranha-céus. Sempre adorei subir a árvores, já fiz trapézio sem rede,
nos beliches fico sempre na cama de cima e, quando era miúda, uma das
coisas que fazia às escondidas dos meus pais era atirar-me de lances de
escada com o meu amigo João Daniel a ver quem tinha coragem de se atirar
do degrau mais alto – e não eram lances pequenos (bom, a minha mãe só
vai descobrir esta parte quando ler esta crónica o que, na verdade,
significa que as brincadeiras não nos correram nada mal).
Mas agora falo particularmente de andar de avião.
Apesar de cada vez mais pessoas viajarem de avião, de acordo com a revista Exame,
para um número significativo voar é comparado a ‘estar num corredor da
morte’, embora, na prática, morrer num avião seja tão improvável como
ganhar o Euromilhões.
Fobias são fobias e não seguem regras
lógicas. Não é sobre isso que quero falar. Apetece-me falar desta
sensação de liberdade que me trazem os sítios onde ‘o tempo fica
suspenso’ como se, assim, me conseguisse ligar de forma mais simples à
realidade, sem ansiedade, só atenção.
Voar. Como estar em palco. Suspender o tempo por tempo determinado. E habitar esse espaço.
Ser, absolutamente. Porque naquele
intervalo o tempo é todo nosso. Antes de voltar à realidade – como se a
realidade não fosse tudo isto.
Na verdade, acho que sou muito mais
corajosa quando estou em cima de um palco ou a filmar do que no resto da
vida. E uso muito menos máscaras também. Mais uma vez, baseada em
ilusões: o tempo não pára porque, na realidade, ele não existe. Não
estou mais segura – porque na verdade nunca ninguém está seguro. Arrisco
muito mais e ajo com mais ousadia porque sei que daí a 1h30 o
espetáculo acaba ou daí a umas horas termina o dia de rodagem – e até lá
vale tudo.
É um exercício de liberdade, na verdade. E,
por isso, tão humano. E como acredito profundamente que as pessoas vão
ao teatro e ao cinema para se ‘verem ao espelho’, para se olharem em
detalhe através dos atores, num encontro tão íntimo como pessoal e
intransmissível (porque cada interpretação é uma interpretação e cada
pessoa a vê através da sua própria experiência), espero que a
experiência do espectador seja libertadora e de encontro consigo próprio
– na medida de cada um, evidentemente. E que, enfim, isto tudo que
andamos para aqui a fazer se mantenha um exercício sobre a humanidade,
sobre a intimidade e sobre a liberdade, em tempos onde a alienação à
tecnologia, o culto do imediatismo e a subserviência ao padrão parecem
impor-se como formas de experienciar a realidade.
Engulo em seco. Sim, tudo isto parece-me muitíssimo mais assustador do que qualquer voo de acrobacias.
Poderá o black mirror (ecrã negro dos nossos gadgets
e nome brilhante para a série da Netflix que afinal não é bem ficção
científica porque a realidade também é aquilo – e cada vez mais)
transformar-se no espelho das novas gerações? E o que está por trás do
ecrã preto?
Estou a voltar de Roma onde já não ia há
uns anos. Antes de ir revi vários filmes do Fellini e ontem fui a uma
exposição sobre a vida e a carreira do Mastroianni. Fotografias do De
Sica a dirigir a Sofia Loren, da Claudia Cardinali nos intervalos de
rodagem com o Marcello, dos bastidores do ‘Dolce Vita’. Estes foram os
espelhos com que cresci – enquanto saltava dos lances de escadas às
escondidas. ‘Life is a combination of magic and pasta’, dizia o Fellini –
como é que isto se traduz na realidade virtual?
Não sei. Inquieta-me.
O avião vai começar a descer agora. Time’s Up.
Isto tudo começou para dizer que gosto de
alturas, não foi? E que me relaxa andar de avião – essa invenção
prodigiosa do homem que nos permite ‘voar’ de um lado para o outro em
tempo recorde?
Irónicas, as minhas preocupações com a
evolução galopante da tecnologia nestas circunstâncias. Mas reais. Tão
reais quanto esta tranquilidade que sinto nas alturas. Tão reais quanto a
insustentável leveza do ser.
IN "DELAS"
29/01/19
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