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IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/01/19
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O assessor parlamentar
Mamadou Ba
Ao contrário da frase batida ("Ah, eu não recebo lições de
ninguém!"), sobre racismo eu recebo lições de muita gente. Mas não,
obviamente, de toda a gente. O carregador negro que trabalhava num
camião e ouviu de mim, eu miúdo, a palavra "preto" deu-me a lição certa,
daquelas boas de receber ainda antes de saber juntar as letras. Ele fez
sangue num dedo e mostrou-mo: "Preto é carvão, branco é papel mas o
sangue é igual, vês?" Tive a minha primeira lição sobre racismo. E, mais
importante, aprendi.
A minha primeira lição de racismo não foi eu
ver o diferente e temê-lo. Contemporâneo ao episódio do carregador -
ainda na meninice, aos 4 ou 5 anos - eu via as marchas de Carnaval
passar pelo meu bairro, de brancos e mestiços, vindas dos musseques, a
caminho da Baixa luandense. Foi antes do começo das guerras e era uma
metáfora sincera da conquista da cidade colonial. Um negro seminu, corpo
luzidio e máscara africana, veio para mim em dança marcada por
tambores. Pequenito e quieto, fiz-me forte e enfrentei o que era
diferente e parecia maldoso. Era diferente e era amigo.
Isso
fez-me, adolescente, chegar a angolano - naqueles anos 1960 significava,
sendo branco, não ser racista. Comovia-me ver casais mistos. Ver numa
montra o disco de Otis Redding The Dock of the Bay levava-me a
pôr a mão no ombro do meu amigo Zé van Dunem e partirmos, eu a assobiar,
ele a fazer gritos de gaivota. Já conhecíamos os versos de Agostinho
Neto "Nós somos/ Mussunda amigo/ Nós somos..."? Não sei, se o
soubéssemos haveríamos de os dizer. Não sabíamos, com certeza, é que
entre Neto e o Zé tanta morte haveria de acontecer. O que havia, disso
lembro-me, era a ideologia revolucionária e simples de dois adolescentes
cor de sol nascente e amigos.
Então, a guerra, nunca a faríamos
do lado errado, eu e ele. Por causa disso, calhou a ele ir para a prisão
e eu para o exílio. Num dezembro, já ele estava preso, entrei num lar
de trabalhadores imigrantes em Bordéus, França. Pedi um quarto. A
francesa da receção disse que não havia. Não?, e apontei para o pequeno
cartaz: "Há vagas." Ela: "Isso é na camarata dos bougnoules." E então? "Eles vão roubá-lo." Insisti, não me importava de dormir numa camarata de argelinos ou tunisinos.
No
dia de Natal, um velho árabe (ponham 50 anos nisso) bateu à minha
porta. A camarata estava dividida em cubículos, com um catre e
mesinha-de-cabeceira, com paredes que não chegavam ao teto nem ao chão. O
árabe ofereceu-me um pequeno bolo: "É tua festa, não é, mon frère?" Lembrei-me, mas não lhe contei, do carregador luandense que anos antes me ensinou a prova do sangue. A prova da igualdade.
Égalité, como se diz naquela França onde estávamos. A mais importante das três palavras importantes, Liberté, Fraternité, Égalité,
porque as duas primeiras são intenções para consumar o facto que
realmente é a terceira. Somos iguais quer se queira quer não - os homens
de todos os tempos e de todos os lugares.
Há lições que nos ficam
para a vida. E sobre racismo elas são essenciais. Estou sempre disposto
a recebê-las, lições sobre o racismo, tão importante é o racismo.
Mamadou Ba, assessor do Bloco de Esquerda na Assembleia da República,
escreveu no Facebook "bosta da bófia", a propósito dos incidentes no
bairro Jamaica. O meu jornal, o DN, escreveu isso:
que um assessor do BE no Parlamento diz da polícia ser merda. Mamadou
Ba respondeu que a notícia do DN "tem um só objetivo: desacreditar a
luta antirracista".
O pano de fundo dos incidentes do bairro Jamaica, no Seixal,
tem muito de racismo. As condições degradantes em que vivem muitos
imigrantes, a falta de representatividade social e política que têm os
cidadãos portugueses negros, a ignorância mútua de negros e brancos, o
contacto conflituoso nos bairros problemáticos entre jovens negros e
forças policiais... Um pano de fundo grave que impede uma obrigação
urgente: lutar eficazmente contra o racismo.
Mamadou Ba ao
escrever "bosta de bófia" não ajudou nada na luta antirracista. Sobre
assunto, o assessor parlamentar do BE parece não ter nada a dizer a
ninguém. Digo eu que tive há muito um carregador negro a ensinar-me o
essencial.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/01/19
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