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A minha estrada
IN "EXPRESSO"
20/11/18
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A minha estrada
de paralelepípedos desapareceu
Passei por aquela estrada centenas de vezes. Nos últimos
anos, quando ia de Lisboa ou regressava do Alentejo, seguia quase
sempre pela estrada nova e mais rápida. Mas ainda este ano lá passei
umas vezes, muitas vezes para ir aos supermercados, que os gigantes da
distribuição colocaram ali mesmo, entre Vila Viçosa e Borba. Era (e é)
uma daquelas contradições que o país tem para nos oferecer: uma estrada
muito antiga de paralelepípedos a ligar duas vilas históricas, pontuada
por um Lidl, um Intermaché e, a rematar, um Pingo Doce. Não havia como
não andar por aquela estrada.
A estrada 255 (só
ontem é que lhe soube o nome ou número) sempre foi, para mim, a velha
estrada de paralelepípedos. Era o ponto que assinalava a chegada ou a
partida do Alentejo. Não por estar literalmente a chegar – de Borba até a
casa dos meus avós, hoje dos meus tios e primos, ainda distavam 28
quilómetros... –, mas pelo som do carro a andar em cima dos
paralelepípedos.
Aquele som, que ainda este ano
ouvi a caminho do supermercado, era o sinal de que se estava quase a
chegar a casa ou a partir de mais um fim de semana ou férias em Terena.
Os meus filhos, como os jovens e as crianças de hoje, não sabem o que é
viajar sem ecrãs para olhar e muita coisa para distrair.
Há
50, 40 ou 30 anos, viajávamos guardando na memória pontos-chave. Podia
ser algo na paisagem, uma casa ou rua, um restaurante na estrada ou
mesmo um som. O meu caminho para o Alentejo tinha aqueles pontos-chave
de que nunca me vou esquecer: a Ponte de Vila Franca, a Estalagem do
Gado Bravo, a paragem em Vendas Novas ou Montemor, os camiões na estrada
de Estremoz. Depois vinham as placas toponímicas mais bonitas do mundo,
gravadas em mármore nas paredes de Borba, e os célebres antiquários. A
seguir, uma praça larga e o som dos paralelepípedos.
Quando
ouvia esse som, sabia que estava a começar a chegar. A seguir vinham as
pedreiras, o Paço Ducal à direita, a curva à esquerda junto ao Castelo
de Vila Viçosa, depois o caminho para o Alandroal e, finalmente, Terena.
No
sentido inverso, aqueles dez quilómetros do soar do carro nos
paralelepípedos eram uma espécie de portagem de quem estava de partida.
Quando aquele som desaparecesse era sinal de que estávamos a chegar a
Borba e, pouco depois, à estrada de Estremoz rumo a Lisboa, apenas com a
esperança de uma paragem nas empadas de Montemor ou nas bifanas de
Vendas Novas.
Aquele som não era (nem é) o mesmo que ver o Castelo de
Terena. Mas era, para uma criança no banco de trás, o sinal para não se
fazer mais a pergunta do “quando é que chegamos?” e começar a contagem
decrescente para o Alentejo. Podia sentar-me mais direito e adivinhar
tudo o que se seguiria. O meu Alentejo era logo a seguir àquele som e eu
conhecia aquilo tudo de cor.
Mais tarde, quando
comecei a guiar optei por caminhos alternativos. Fiz o caminho por
Reguengos, mas não era a mesma coisa. Quando a A6 chegou, passei a sair
na Azaruja rumo a São Miguel de Machede e ao Redondo. Não era fácil
explicar porque preferia as estradas secundárias. Mas quem conhece e
percebe o Alentejo, sabe do que estou a falar. Mesmo assim, acabei por
me render ao trajeto da minha infância, com uma diferença, além da A6.
Aquela estrada nova tirava-me Borba e Vila Viçosa e o som que as ligava.
Essa estrada entre Borba e Vila Viçosa era mesmo
de uma categoria diferente. Não tinha a extensão do horizonte, o montado
ou os animais. Não era especialmente bonita, mas era única. Aquela
saída de Vila Viçosa, com muros baixos e oliveiras até chegar às
pedreiras, sempre sem se poder acelerar muito e com aquele som dos
paralelepípedos que já se escuta em poucos lugares.
Ontem,
a estrada ruiu, entalada entre duas pedreiras que sempre fizeram parte
da paisagem. Já tiveram melhores dias e muito mais gente a trabalhar
nelas. Os anos de ouro eram os das histórias que ouvíamos nos cafés e
nas tascas sobre as vendas de mármore para os palácios de Saddam e dos
emires. Alguns técnicos e operários iam ao Golfo para acompanhar as
construções. Quando regressavam contavam histórias das Arábias. As
guerras do Golfo acabaram com isso tudo.
Há uns
meses li um texto onde Álvaro Siza dizia que os mármores de Estremoz
eram os melhores do mundo. Não era uma opinião, era um facto que tinha a
ver com a reconstrução de um projeto de Alvar Aalto, onde os mármores
de Carrara fizeram má figura. Testaram todo o tipo de mármores e ganhou
Estremoz.
Este ano, pela mão da Guta Moura Guedes, o
nosso mármore marcou presença em Veneza, com assinatura de grande
arquitetos e designers. Ainda bem, porque é uma forma de valorizar um
dos recursos mais incríveis que temos. Mas esse recurso tem outro lado
que ontem vimos de forma trágica e espetacular: o de uma indústria que
já viu melhores dias, enfiada numa paisagem difícil, de autarquias com
poucos recursos e problemas mais graves do que uma estrada que estava
ali desde sempre e que se havia de aguentar enquanto Deus quisesse.
Só
não estamos perante um segundo Entre-os-Rios porque não ia a passar um
autocarro da Rodoviária. Ou um transporte escolar. Ou turistas a caminho
do Palácio de Vila Viçosa. Ou tantos, como eu, à procura do
supermercado onde encontrar isto ou aquilo.
A
estrada de paralelepípedos começou a morrer há uns anos com a chegada da
estrada nova. É assim em todo o lado, temos mais pressa, direito a uma
via melhor e Borba e Vila Viçosa não podiam ter o trânsito a cruzar as
suas ruas. Só não precisavam era de ver a sua estrada a cair cinquenta
metros em tão poucos segundos, levando cinco dos seus para a morte.
IN "EXPRESSO"
20/11/18
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