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IN "PUBLICO"
18/11/18
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Os estivadores do Porto de Setúbal,
os médicos, os professores...
Portugal é um faroeste laboral
Há anos que os trabalhadores eventuais do Porto de Setúbal são permanentes. Tão permanentes que foram obrigados a passar uma procuração a funcionários administrativos das empresas que assinam por eles o contrato de trabalho ao turno.
Carla Ribeiro é estivadora no Porto de Setúbal. Com voz pausada, olha
as câmaras de frente: "Tenho uma filha de 5 anos. Sou estivadora. Estou
há 9 anos contratada ao dia. Trabalhei grávida até aos 8 meses e meio.
Já cheguei a ligar ao meu marido depois de trabalhar das 8h às 17h
dizendo que ficava até à 1h da manhã e ligar-lhe de novo a dizer que ia
fazer o turno da noite até às 7h da manhã. Agora chega, estamos
abraçados nesta guerra. Nem um passo atrás."
Ela faz parte de um
contingente de 309 trabalhadores eventuais do Porto de Setúbal; 146
destes trabalham com regularidade, alguns há vinte anos, para as
empresas Operestiva e Setulset. Os restantes, para subcontratadas.
Setúbal começou em Leixões. E começou em Agosto. Quando este ano os
estivadores da Madeira e Leixões quiserem passar do velho sindicalismo
corporativo e de promiscuidade com as empresas e começaram a
sindicalizar-se no SEAL — o sindicato de Lisboa conhecido pela sua
combatividade, que passou a sindicato nacional. Como retaliação foram
postos na “prateleira” pelas empresas, alguns a varrer o chão. E viram o
seu salário real reduzido. Em resposta, desde 13 de Agosto, todos os
estivadores do país, fixos e eventuais, entraram em greve às horas
extraordinárias - causando intensos atrasos nas encomendas ou
mercadorias.
Os patrões de Setúbal não acharam graça à solidariedade e decidiram
tentar partir a greve oferecendo – agora, ao final de 20 anos! –
contratos a alguns deles, um par de dias depois de os terem tentado
“despedir”. Tirando dois, todos se recusaram a assinar e entraram em
paralisação total no dia 5 de Novembro, sob o lema «Ou assinamos todos
ou não assina ninguém». Alguns Trabalhadores da VWAutoeuropa
solidarizam-se publicamente com eles. Também os do sindicato dos call-centers, do Metro, SOS Handling/Groundforce, vários sectores dos transportes, da CGTP.
Há
anos que os eventuais de Setúbal são permanentes. Tão permanentes que
foram obrigados a passar uma procuração a funcionários administrativos
das empresas que assinam por eles o contrato de trabalho ao turno. Mas
há mais. Quando adoecem fora das horas do contrato não podem meter baixa
(o vínculo com a empresa cessa ao fim de cada turno). Assim ligam para a
empresa, a empresa assina o contrato como se estivessem a trabalhar, o
coordenador confirma, e eles podem ter baixa médica...
Estas e outras jóias do faroeste laboral têm sido, repetidas vezes, comunicadas à ministra do Mar e à ACT.
Nunca houve resposta. Nas Comissões Parlamentares do Trabalho e da
Segurança Social e da Agricultura e Mar, estes assuntos têm-se arrastado
com BE e PCP a agitar os assuntos, mas não se sabendo se vestem a pele
da geringonça ou da oposição. Tudo em vão, enquanto não se mudar a lei
dos Portos e se negociar um contrato colectivo de trabalho nacional para
os estivadores, o conflito vai perdurar. Com grave impacto para os
estivadores, e também para milhares de empresas do país, que perdem milhões e nada ganham com os lucros dos poucos concessionários dos Portos.
Finalmente, o país pareceu interessar-se. Não pela Carla e sua
família, nem por estes homens com vidas suspensas em contratos de
trabalho por horas, mas pelas filas de carros da VW/Autoeuropa que se
acumulam. A ansiedade da ministra do Mar não é com as vidas destruídas
de quem trabalha, mas com os recados dos accionistas da Autoeuropa.
Não fora a agitação automobilística dos últimos dias, António Costa
estaria ainda, presumivelmente, a trocar cartas com Manuel Alegre sobre
touradas.
Tenho um interesse científico particular nesta
paralisação (na verdade, não é uma greve formalmente, porque sendo os
estivadores eventuais e recrutados ao dia não têm direito ao trabalho,
mas também não têm obrigação de prestá-lo) porque sustentei em vários
livros que é muito mais fácil hoje aos trabalhadores organizarem-se do
que o era há 30 anos. Esta afirmação suscita sempre espanto, uma vez que
os sindicatos tradicionais insistem no mito de que se não lutam mais é
porque os trabalhadores sindicalizados são poucos e frágeis. A
paralisação do Porto de Setúbal confirma a minha tese. O modelo just in time obriga as empresas a ter stocks
reduzidos. A deslocalização é uma ameaça permanente, mas ao mesmo tempo
hoje um pequeno sector pode parar toda uma cadeia de produção.
Globalização significa dumping, mas também dependência. A
paralisação dos estivadores de Setúbal pode parar a maior fábrica do
país e os estivadores da Suécia ou de Santos no Brasil podem parar
também, e isso ter efeitos imediatos em Lisboa ou Barcelona.
O elo
mais fraco da globalização podem ser os trabalhadores. E têm-no sido.
Mas também podem vir a ser as empresas, cujos lucros assentam em baixos
salários conseguidos pelo pavor de perder o emprego. Neste campo é
importante lembrar que greves são medidas de força que exigem
responsabilidade para com a sociedade. Assim, o sindicalismo deve ser de facto
democrático, independente de qualquer governo e internacionalista – de
outra forma esbarra sempre nos seus próprios limites e não representa os
interesses de amplas camadas da população.
A “vantagem
competitiva” do país, a partir dos anos 80 foi a crescente
intensificação do trabalho e os baixos salários. Segundo Eugénio Rosa, o
custo/hora da mão-de-obra diminuiu no 1.º trimestre de 2018 (-1,5%)
quando comparado com o custo/hora do 1.º trimestre de 2017, o rendimento
médio dos Portugueses é inferior ao que era em 2008. O investimento
caiu. A produtividade está toda nas costas dos trabalhadores, manuais e
intelectuais, chamados a mais cada vez com menos. Médicos, professores,
enfermeiros, estivadores, operários, operadores de call center, aeroportuários, trabalhadores do Metro, função pública, o que mais dizem é: "Estou cansado, tenho medo".
As
empresas pagam o salário mínimo ou pouco mais, mas os impostos dos
sectores qualificados pagam as taxas sociais a que os pobres hoje, mesmo
trabalhando, são (indignamente) obrigados a recorrer: subsídio social
de desemprego, taxa da electricidade reduzida... A cada dia os pobres
têm de fazer prova da sua pobreza e aceitar estender a mão ao Estado.
Assim, temos 47% de pobres e depois das transferências sociais passamos
para 18%. Ora o Estado social é universal, transferências são
focalizadas – ajudam a perpetuar a pobreza, ainda que no curto prazo a
aliviem.
O outro problema de Portugal, e do mundo, é o modelo piramidal de
empresas que concentram os lucros na casa-mãe e não têm trabalhadores. E
nas subcontratadas concentram os trabalhadores e não têm lucros. Este
modelo criou orgias de lucros e de desigualdade social, deixando as PMEs
asfixiadas e os trabalhadores exaustos. No caso dos Portos, há muito
nos devíamos ter perguntado: por que não são públicos, sendo
estratégicos, e se acaba com este calvário do trabalho brutal para
servir poucos intermediários? Esta é a resposta que Costa não deu.
Este
Sábado o SEAL em plenário nacional para responder ao conflito no Porto
de Setúbal votou, por unanimidade, a possibilidade de filiação dos
trabalhadores eventuais deste Porto, de forma a poder contribuir para a
dignidade da sua subsistência. Solidariedade não são cartas que o vento leva, mas acções concretas.
Sociedades
têm que produzir bem. É importante trabalhar bem. Mas têm que se
perguntar como, quem, para quem e o que se produz. Um dos estivadores, o
Duarte Vitorino, dos Açores, com contrato sem termo, está solidário com
a Carla. Ganha 850 euros, destes desconta 4% para o Sindicato, com os
extra chegava aos 1200, 1300 euros mensais. Disse-me, em entrevista:
"Vivo com menos 500 euros desde que estamos em greve ao trabalho
extraordinário, fazemos o esforço, a minha mulher está ansiosa, mas não
me importo, é por todos (…) além disso, agora vejo o meu filho todos os
dias (sorri). Aguento ficar em greve ao trabalho suplementar mais um
ano!". Nesta luta ele e os seus desenvolveram o sentido de cooperação,
de justiça, de coragem. Sentido que o trabalho desumanizado, onde um VW
parado parece ser mais importante do que eles, não lhes pode dar.
IN "PUBLICO"
18/11/18
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