"Cá fora ela continuara a luta sem uma fraqueza, sem uma transigência, mais extrema nas suas posições do que o marido como sempre fora e continuaria a ser, mesmo depois do ANC tomar o poder."
Escrevo no aeroporto Humberto Delgado, sentado numa cadeira de rodas,
à espera do avião para Bruxelas, atrasado uma hora. Lembro-me de sessão
de propaganda eleitoral de Delgado em Lisboa, em 1958, a que fui com o
João Monjardino e o Pedro, seu pai. À saída, Guarda Republicana a cavalo
batia nas pessoas a torto e a direito. Poucos anos depois, a PIDE armou
cilada ao general, assassinou-o barbaramente e à amante brasileira e
enterrou-os mal num descampado espanhol perto de Villa Nueva del Fresno.
Hoje, Delgado dá o nome ao aeroporto internacional de Lisboa (e Pedro
Monjardino dá o seu a rotunda à beira mar na estrada de Cascais para o
Guincho). Há dias em que a gente acredita no progresso moral da
História.
Amiga que assistira terça-feira a palestra minha sobre
Nelson Mandela mandou-me dizer por email: "Faltou a Winnie - por trás de
um grande homem há sempre um grande mulher ou há um grande homem apesar
da mulher?" Winnie, em cuja modesta casa no Soweto Mandela se instalou
vindo da prisão na Província do Cabo para Joanesburgo, merecia palestra
ela própria. Quando a conheci, depois de 27 anos com o homem preso,
tinha charme e sex-appeal a rodos (tal a Greco de Prévert, ela était
faite comme ça. Depois de começo triunfal, a vida não lhe fizera
favores. Estudara até onde pudera ir sob a pata asfixiante do apartheid,
roubara Mandela à primeira mulher (tiveram duas filhas), militava com
tanto entusiasmo quanto ele contra o regime, mas o advogado brilhante,
chefe do braço armado do ANC e boxeur amador exímio foi preso, condenado
a prisão perpétua por terrorismo e mandado britar pedra para Robben
Island.
Cá fora ela continuara a luta sem uma fraqueza, sem uma
transigência, mais extrema nas suas posições do que o marido como sempre
fora e continuaria a ser, mesmo depois do ANC tomar o poder. Prisão,
residências fixas, desterros, humilhações impostas pelas limitações
cruéis e mesquinhas da legislação racial mirabolante do apartheid.
Entretanto ganhara nome, fieis, também oposição no partido - Cyril
Ramaphosa detestava-a e era recíproco - e até uma espécie de milícia de
futebolistas amadores que marcava terrenos e matou um miúdo de escola, o
que deu processo crime e escândalo grande. E os amantes, que foram
muitos (est-ce ma faute à moi?). Mandela disse sempre que fora ele o
chefe que abandonara a família, mas as diferenças entre os dois eram
incompatíveis e divorciaram-se. Morreu depois dele, com quem mantinha
relação pública de amizade e ganhou o seu lugar na História. O lado
democrático do ANC que procura construir uma África do Sul decente
depois da inépcia de Thabo Mbeki e da corrupção teratológica de Jacob
Zuma continua a abominar a sua memória. O lado revolucionário do ANC que
quer a expropriação dos brancos e política social ruinosa continua a
adorá-la.
Quanto a Nelson, teve outras mulheres; o casamento
tardio com Graça Machel pareceu trazer-lhe mais felicidade do que
qualquer outro. Nestas coisas não há regras.
IN "TSF"
09/11/18
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