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** Filósofo, Universidade da Beira Interior
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
12/10/18
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#Metoo e todos nós
Não nos libertámos ainda, homens e mulheres, nem a nós nem aos nossos filhos, de uma cultura de poder que tem na sua base uma compreensão da própria sexualidade enquanto violência.
Em Outubro de 2017, o movimento #Metoo globalizou-se com uma hashtag
que se tornou viral nas redes sociais. Um ano depois, acerta em cheio
no amor próprio do universo português. O cidadão nacional mais conhecido
da actualidade, talvez mesmo de toda a história do velho país, um ídolo
à escala global, foi alvo de uma queixa formal de violação. Em jornais,
televisões e redes sociais, irrompem reacções de grande violência,
sucedem-se invectivas de macartismo e de totalitarismo, proclama-se que a
liberdade está ameaçada.
Mas onde está o macartismo? Na mulher
que exerce o direito legal de apresentar uma queixa e levar a
julgamento um homem — com as garantias legais inegociáveis, claro, de
presunção de inocência e de que in dubio pro reo? Ou, pelo
contrário, em quem a manda calar com intimidações, degradando-a em
epítetos imorais, julgando-a sumariamente fora de qualquer tribunal?
Vociferou-se
ao longo de uma semana por não se ilibar sumariamente o ídolo enquanto
se ateava a fogueira onde se quer fazer arder as novas bruxas do nosso
tempo. Nenhuma mulher está a salvo de ser uma delas. E nem precisa de
ser uma activista do #Metoo.
Mulheres e meninas, não saiam de casa
à noite, não usem saias curtas nem decotes arrojados, não bebam copos,
não se divirtam, não conversem com homens, e sobretudo não se atrevam a
desejá-los.
Ou então sujeitem-se, sem complacência, à condição de que
tudo vos possa acontecer, porque um homem assim provocado estará sempre
só a agir de acordo com os seus instintos incontroláveis. A burca é
usada para cobrir mulheres islâmicas apenas por causa desta concepção
doentia de homem incapaz de se controlar, caso vislumbre uma nesga de
corpo feminino. Um horror, ver os homens assim representados. Mas também
entre nós persiste esta representação.
Atenção: quem defende o
direito de uma alegada vítima ser ouvida não está a querer fazer dos
homens bestas nem a colocar a liberdade sob ameaça (a liberdade de quê?
De ofender sexualmente mulheres? De prescindir do seu consentimento?).
Estas acusações, e as acusações de caça aos homens, servem bem uma nova
caça às mulheres que não se conformam, essas bruxas!
O #Metoo,
para estes que o acusam de macartismo e totalitarismo, é ameaçador não
porque alguma liberdade universalizável esteja em causa, mas porque
atinge um esquema de dominação social, histórica e geograficamente
transversal: o da dominação sexual. Não nos libertámos ainda, homens e
mulheres, nem a nós nem aos nossos filhos, de uma cultura de poder que
tem na sua base uma compreensão da própria sexualidade enquanto
violência. Assim o evidencia o calão, que expõe enquanto linguagem sem
inibições o acto da penetração como o arquétipo simbólico de violência.
Sobre a mulher, mas também sobre o homem. A consumação sexual tomada
como um acto de consumação de poder, demonstrado por quem penetra sobre
quem é penetrado.
Uma cultura da sexualidade assim comprometida
com a violência, além de degradar a sexualidade, que devia ser uma
experiência boa e sem fantasmas, permite olhar a violência sexual como
se fosse apenas um excesso, mais ou menos inaceitável, como se fosse
apenas uma matéria de grau numa escala, na verdade toda ela viciada.
A
hipocrisia vai ao ponto de tornar o consentimento um mero passo
protocolar, congeminável de forma tácita. Se uma mulher disse que quer
fazer A, então tem de aceitar B, C, D e tudo o mais que o parceiro
queira. Se ela não consentiu em nada explicitamente, mas entrou no jogo
da sedução, então já não se pode recusar a nada. Porque, em matéria de
consideração social, ou é virgem, simbolicamente virgem para sempre, ou é
uma puta.
É claro que um casal normal não se permite entender que
consentir numa relação sexual seja consentir tudo. Porque haveria de
ser diferente com a mulher que mal se conhece? É simples e cruel: a
esposa, a filha, a mãe, a irmã de cada homem estão resgatadas de uma
categoria abstracta de mulher, porque esta está, por defeito, cultural e
socialmente identificada como devedora de satisfação sexual. Pagar-lhe
já é uma concessão. O filho/a filha da p. é ofendido/a não por a sua mãe
ser uma prostituta, mas por não ser mais do que uma mulher abstracta
que não se soube resgatar.
É esta concepção de base que explica a
simples grosseria do colunista Henrique Monteiro que diz que “uma santa
não se meteria no quarto de hotel de um homem”, ou a boçalidade do
presidente de câmara de Aveiro que fala em “dar uma esfrega nas
caloiras”, ou a brutalidade de Bolsonaro que em acalorada discussão
disse a uma deputada, cúmulo da desqualificação, que não merece ser
estuprada por ser “muito feia”. Daqui vêm também todos os anátemas que
se lançam às raparigas e às mulheres que são donas do seu comportamento,
e que usam sem constrangimentos saias e calções muito curtos em bares
nocturnos, sem o fazerem submetidas ou dispostas a submeter-se a um
homem… essas malditas provocadoras.
“Medusa no Palácio da Justiça: Uma história da violação sexual”, (Tinta
da China 2017), de Isabel Ventura, é um trabalho de fôlego que merece
ser atentamente lido. Nele se identificam os principais discursos sobre a
origem da violação e se traça uma história jurídico-legal deste crime,
recorrendo a inúmeros exemplos de acórdãos de tribunal no nosso país.
Como
uma espécie de pano de fundo cultural, a investigadora evoca o mito da
Medusa, que nalgumas versões era antes uma jovem irresistível do templo
de Atena. Ao ser violada por Poseidon, vê cair sobre si a fúria
castigadora de Atena, que a transforma em monstro, transferindo dessa
forma para a vítima a culpa. Existe uma expressão inglesa para isso: “victim blaming”.
De bela e sedutora, Medusa transforma-se em ser horrendo cuja
capacidade de petrificar os homens é uma maldição que a condena à
solidão.
Da culpabilização das vítimas vemos ecos demasiados nos
dias de hoje, em expressões como o “pôs-se a jeito”, “correu o risco”,
“provocou”, “não gritou”, “não lutou o suficiente”, etc., ou nalgumas,
demasiadas, decisões judiciais aplicadas a este crime com as
argumentações que as justificam. E é claro, toda a gente sabe que “um
homem não é feito de ferro”.
É talvez o motivo que mais explica as
baixas taxas de falsas denúncias de crimes sexuais (2,28% dos crimes
denunciados, cf. “Público” online, 28 de Setembro de 2018). O
facto de o abuso sexual ser o acto criminoso socialmente visto como mais
degradante para as vítimas favorece nelas os sentimentos de vergonha e
de autoculpabilização, os anátemas que funcionam como uma legitimação
tácita dos crimes, e que têm tornado ao longo do tempo muito difícil
quebrar silêncios.
Ainda há semanas o tão divulgado acórdão da
relação do Porto relativizava a gravidade de um crime em que a vítima
foi alvo de abuso e de penetração vaginal, por parte de dois agressores,
enquanto estava comprovadamente inconsciente e incapaz de reacção. Os
juízes invocaram um suposto “ambiente de sedução mútua”, que se traduz
numa responsabilização da vítima, porque nela está a responsabilidade de
não se ter sabido resguardar, de assegurar o seu resgate enquanto
devedora de satisfação sexual. É só neste aspecto que a vítima é vista
como sujeito, enquanto guardiã da sua própria virtude, e como tal
responsabilizável por qualquer ataque.
Quando se dá como relevante
num crime desta natureza o facto de não existirem visíveis danos
físicos, a vítima volta a ser reduzida à sua condição de mera
propriedade material que pode sair mais ou menos danificada de um
assalto. A esposa, a filha, a irmã que assim se vê maculada e cuja
desonra se estende à família. Neste mesmo acórdão, a única vez que os
juízes se referem à vítima enquanto vítima é quando lhe reconhecem esse
estatuto, com o qualificativo de “especialmente vulnerável”, por estar
inconsciente e não se ter podido guardar.
Mas o estatuto
serve-lhes apenas para lhe definirem uma indemnização pecuniária, que
aliás a própria vítima nunca terá exigido, e que aparece aqui a
objectificá-la, ao mesmo tempo que se atenua a culpa dos agressores como
se estes se tivessem limitado a fazer um uso indevido de algo que não
lhes pertencia.
Já no caso de Kathryn Mayorga, e também das
representantes do #Metoo em geral, a questão do dinheiro parece tão
sensível nas reacções de tantas e tantos que as acusam de vendidas e as
desqualificam enquanto vítimas, por supostamente o seu silêncio ter tido
um preço, quer fosse um valor fixado, quer fosse a promessa de ascensão
social.
Para esses e essas que se indignam, o #Metoo é o
sindicato de todas as bruxas, a sua encarnação socialmente diabólica,
fora de controlo, que desafia o esquema milenar de dominação, que
confundem com civilização. Elas quebraram o silêncio, e desta vez a
desgraça não recaiu sobre o marginal que pudesse eventualmente também
atentar contra a castidade inocente de mães e filhas e irmãs, mas sobre o
bem-sucedido e integrado, até rico e com glamour, o ícone, aquele que
sempre pode comprar silêncios.
Permitindo uma carreira, uma passadeira
vermelha a vítimas que tiveram de negociar a dissimulação. Mas a recusa
do silêncio é o gesto verdadeiramente libertador e emancipador do
movimento #Metoo. Houve quem lhes chamasse mulheres sem carácter. É não
perceber que é precisamente contra essa condição a que foram destinadas
que se rebelam.
Porque, a par do poder de sedução, o poder da
mulher na ordem patriarcal é um poder, ora malévolo, ora infantilizador,
da dissimulação, da mentira ou da manipulação. É o pequeno poder das
despojadas de poder. Vemo-lo levado ao extremo, por exemplo, na
magnífica história de Margaret Atwood, vertida em série televisiva,
“Alias, Grace”, ficção a partir de um episódio verídico ocorrido na
época vitoriana na colónia canadiana.
A protagonista, Grace Marks,
criada em casas de família burguesas, está e esteve sempre à mercê de
múltiplos abusos. Originária de uma família irlandesa emigrada no
Canadá, órfã de mãe, fugitiva do insuportável abuso de um pai
alcoólatra, carregando desde logo essa mácula à qual se acrescenta a
culpa de ter deixado para trás um molho de irmãos pequenos. Virá a ser
co-autora de um duplo homicídio, de um patrão e sua governanta/amante. É
condenada a prisão perpétua, conseguindo evitar a forca a que foi
condenado o seu parceiro de crime, por não se perceber se ela conserva o
seu perfeito juízo. Porque o sexo fraco também foi sempre muito atreito
a todo o tipo de histerias e perturbações mentais.
A narrativa
mantém-nos, a nós e a um médico que é uma espécie de psicólogo, na
incerteza de se devemos acreditar na sua loucura ingénua de se crer
possuída pelo espírito manipulador e vingativo da amiga, Mary Whitney,
também ela criada, morta na sequência das complicações provocadas por um
aborto, ou se estamos pura e simplesmente a lidar com a capacidade
encantatória digna de uma bruxa, ou de uma Xerazade, capaz de nos manter
suspensos no fio das histórias que lhe evitam a morte.
E a
questão é que a diferença entre uma e outra se calhar é quase nenhuma.
Foi Mary quem ensinou a Grace como desempenhar o seu papel de serva e
como manter-se longe do perigo que representavam os homens, ao mesmo
tempo que escarnecia com graça dos ares superiores da burguesia e
tentava insuflar esperanças de emancipação motivadas pelas rebeliões que
ocorriam nessa altura nas colónias britânicas do Canadá. Mary, que quis
ser dona do seu destino e se deu à liberdade de uma paixão, não pode
evitar ela própria a sua desgraça, engravidada por um jovem patrão.
A
dominação de género, dominação sexual, dominação de classe fazem um
triângulo que tem de ser desarmadilhado, por velho, civilizacional,
complexo que seja. As democracias que vemos ceder todos os dias, cada
vez menos liberais, apostam tudo na restauração do esquema da dominação.
Esta não é uma luta do passado. É a luta pelo futuro digno de todos
nós.
* Ensaio coescrito por Vera Tavares, Designer, de acordo com a antiga ortografia.
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