30/09/2018

JOÃO TABORDA DA GAMA

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Le pénis

Não gosto de fascistas e tenho pouco a dizer sobre pilas, mas abomino qualquer forma de censura de uns ou de outras. Proibir a vista dos pénis de Mapplethorpe é tão condenável como proibir a vinda de Le Pen à Web Summit. A minha geração não viveu qualquer censura, nem a de direita nem a que se lhe seguiu de esquerda. Fomos apenas confrontados com alguns relâmpagos de censura, mais caricatos do que reais, a última ceia do Herman, o Evangelho de Saramago. E as discussões mais recentes - o cancelamento de uma conferência de Jaime Nogueira Pinto na Nova, a conferência com negacionista das alterações climáticas na Universidade do Porto - demonstram o óbvio: por um lado, o ato de proibir o debate seja de quem for é a negação da liberdade sem mas ou ses, mas também a demonstração de que não há entre nós um instinto coletivo de defesa da liberdade de expressão independentemente de concordarmos com o seu conteúdo, e de este ser mais ou menos extremo.

Mas não é também a liberdade destas entidades, na sua maioria privadas, fazerem o que quiserem, mostrarem e não mostrarem o que querem? O que é condenável é o recuo perante a crítica, perante o medo - o sinal pior de todos. Serralves pode organizar mostras de anjinhos em vez de pilinhas, mas escolhendo estas coloca-se num espaço de limitação de liberdade cujo recuo ou acomodação por pudor, ou crítica, não pode deixar de ser debatido como afronta dessa mesma liberdade. Deixo a nota que o que se passou em Serralves parece ser menos do que parecia, e que é comum as fotos terem alguma seleção e avisos, como veio explicar o presidente da Fundação Mapplethorpe que considerou precipitada a demissão do diretor João Ribas (homónimo do falecido vocalista dos... Censurados).

Censurar diviniza. Holland Cotter, crítico de arte do The New York Times, escreveu há uns anos que a campanha judicial e mediática contra a exposição retrospetiva The Perfect Moment, de Mapplethorpe, em 1989, três meses depois de ter morrido com sida marcou o início da sua canonização.

No domingo fui ver o filme Easy Rider (de Dennis Hopper, 1969) ao CCB, levei a minha filha mais velha. No filme, os dois amigos vendem e consomem muita droga, há algum sexo e toda a narrativa é subversiva. É adequado para uma adolescente de 16 anos acabados de fazer? Estes exercícios de liberdade são pretextos para enquadrar o valor profundo, único em todos os sentidos, da necessidade de critério perante a escolha, perante as opções, a antecipação das consequências, mas também, que é a parte maior da liberdade, o confronto com o desconhecimento das consequências, nunca a ausência de consequências. Porque tudo tem consequências. E uma das lições, uma das ideias, é precisamente a da responsabilidade perante os nossos próprios atos quando estes nos retiram a liberdade (desde logo a bebida ou outras formas de intoxicação, mas também as relações de codependência, o carneirismo, a manada). As coisas geralmente não são más em si, são más quando fazemos o que não queremos, ou não queremos os efeitos do que fazemos. E depois há a liberdade dos outros, a fronteira vermelha de todos os nossos atos. Muitos dos atropelos da liberdade passam por não escutarmos o que o outro quer ou não quer, se os nossos instintos, com a sua força própria, estão do outro lado a ser acolhidos em liberdade.

Neste momento, dois sistemas de justiça andam a ser confrontados com isto mesmo, como querem ser vistos, que mensagem querem dar, a propósito de homens que passam por cima da liberdade da outra, que não controlam os seus mapplethorpes, sobre a igualdade e desigualdade dos géneros. Quando tinha 17 anos um jovem alcoolizado forçou uma rapariga de 15 em cima de uma cama e tentou ter sexo com ela. Passados 36 anos esse episódio, relatado pela vítima, pode custar a Brett Kavanaugh a nomeação para o Supreme Court. A verdade nunca se saberá, de um lado um testemunho convincente, do outro a ausência de testemunhas e até agora o carácter singular da acusação, e no meio destes dois lados 36 longos anos. Poderá alguém de quem se suspeita ter feito isto ser juiz de um tribunal superior? Um barman e um segurança abusam sexualmente (cópula) de uma rapariga alcoolizada e inconsciente na casa de banho de uma discoteca, confessam, há vídeos. Em conversas intercetadas dizem "ela estava toda fodida" "toda desmaiada no quarto de banho". Um tribunal considera os factos provados mas suspende a pena (como teria sido sem confissão ou vídeos?). O tribunal superior considera, numa sentença coassinada pelo presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, Manuel Soares, que a pena se deve manter suspensa. Perante o escândalo público, o sindicato reage a coice, dizendo que tem toda a razão, e que os juízes não andam a reboque "das associações militantes das causas" (sic), e que ao criticar-se o acórdão aumenta o sofrimento da vítima. Tanta coisa que falhou.

A educação para liberdade interior, e para o respeito dessa no outro, é o maior desafio a cada um de nós. E não é óbvio onde está esse critério: uns encontram-na em sistemas ideológicos políticos, outros numa forte ética dentro de si próprios, outros fora ou na conjugação de tudo isto. No meu caso, alimento-o na arte e na cultura, na criação subversiva, na liberdade extrema dos outros, mesmo, ou sobretudo, quando choca, ou impressiona. Mas foi quando me converti ao catolicismo que encontrei o critério e a medida da mais absoluta liberdade interior, porque baseada numa regra de amor. Para muitos, sei, é contraditório, ver na religião a porta da liberdade. Talvez esteja eu a ver mal, talvez não estejam eles a olhar para a mesma religião que eu, ou não estejam a ser livres no seu olhar - nunca saberemos, se eles tiverem razão; saberemos um dia, se eu tiver razão.

No Easy Rider há uma busca de liberdade interminável, na estrada, nas drogas, na comuna hippie, através do dinheiro. Mas é numa das primeiras cenas, em que param num rancho de uma família numerosa, cristã, para arranjar um pneu, em que o rancheiro lhes oferece uma refeição, carregado de crianças, com uma mulher de outra etnia (nativa?), que Wyatt (Peter Fonda) é confrontado com uma forma de liberdade que identifica mas não esperava. Diz ao dono do rancho: "Não são todos os homens que conseguem viver da terra. Fazer as suas coisas, ao seu ritmo. Deves estar orgulhoso." Quando Wyatt e Billy são mortos no final, não é pelas drogas na comuna hippie nem pela família que leva a sua vida no rancho a procriar e a trabalhar. É por um bando de rednecks, radicais intolerantes, que julgam viver uma verdade absoluta que não suspeitam que lhes foi imposta, pessoas que nunca se questionaram sobre a sua liberdade.

Advogado

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/09/18


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