.
IN "SOL"
06/06/18
.
A arte de sobreviver
numa casa com crianças
Para a casa não ir abaixo e os habitantes não entrarem em colapso impõe-se tomar algumas medidas preventivas
Viver numa casa com crianças pode ser um desafio. Os mais pequenos
adoram dar asas à imaginação, mexer em tudo com as suas hábeis
mãozinhas, comer o que sabem que lhes sabe bem e também provar o que não
conhecem. Só estes dois aspetos já são os terríveis aliados para fazer a
diferença entre uma casa com e sem crianças.
Para a casa não ir abaixo e os habitantes não entrarem em
colapso impõe-se tomar algumas medidas preventivas. Na nossa a despensa
tem de estar fechada porque se estiver aberta, mesmo que por alguns
minutos, enche-se de bocas famintas a procurar conforto. O processo de
guardar a chave tem refinamentos ao nível de uma prisão de alta
segurança. É escondida em sítios improváveis, de fácil ou difícil
acesso, que mudam regularmente ou sempre que são descobertos. Todos os
objetos mais frágeis, de maior valor ou indispensáveis têm de ser
colocados em sítios também aparentemente inacessíveis.
Infelizmente por vezes o feitiço vira-se contra o feiticeiro e estes
rituais, embora possam evitar catástrofes, acabam por se tornar uma
prisão não para os mais novos, mas para quem os criou.
Houve uma altura em que o nosso filho mais novo acordava a meio da
noite e, como era um pisco a comer, quando isso acontecia dávamos-lhe um
pouco de leite e adormecia refastelado. Só que quando nos deitamos
fechamos também a cozinha à chave, para evitar que se repitam algumas
surpresas como uma inundação de leite de chocolate que saiu por baixo da
porta e desceu três andares. Ora, quando me levantava estremunhada às
quatro da manhã com um bebé a chorar e ia direita à cozinha batia com o
nariz na porta. No meio do meu estado quase inconsciente tinha de me
lembrar onde tinha posto a chave e voltar ao quarto para a ir buscar ao
sítio mais improvável. E lá voltava eu. De seguida a chave da despensa…
Finalmente o quarto do bebé que com sorte não tinha acordado os irmãos.
Já nos aconteceu também várias vezes querermos fazer o jantar e a chave
da despensa estar tão bem escondida que ninguém a encontra e passarmos
horas à sua procura ou alguém sair de casa com ela no bolso. Para
preparar uma simples refeição tenho de procurar a bendita chave, abrir e
fechar a porta uma dezena de vezes. Se não o faço quando me volto a
despensa já está a ser assaltada. O próximo passo é fazer uma chave
nova. Mas - se algum dia me lembrar de a fazer - será como as chuchas,
podemos ter mil que à hora de dormir a casa enche-se de buracos que as
engolem.
Outra aventura é ver televisão. Por melhor que esconda os comandos na
hora em que preciso deles já desapareceram. Quando passado demasiado
tempo já desesperançada os encontro falta sempre uma pilha e recomeça
uma nova busca. Quem diz os comandos diz todas as coisas que escondemos
tão bem do seu alcance que desaparecem também da nossa memória.
Podia descrever um rol de situações desesperantes como estas, em que
nos sentimos manietados pelas nossas próprias armadilhas ou pela falta
de cuidado dos mais novos, mas o jornal não teria páginas suficientes
para as receber.
Podem dizer que se tivesse filhos mais arrumados ou mais obedientes
não teria de passar por nada disto. E é verdade. Mas se não tivessem o
menor ímpeto, uma incontrolável curiosidade, imaginação e desassossego
eu ficaria preocupada, eles certamente não seriam tão felizes e eu
também não. Além de que não teria histórias engraçadas para recordar.
IN "SOL"
06/06/18
.
Sem comentários:
Enviar um comentário