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O novo 11 de Março
A verdadeira história da vaga de
privatizações dos tempos da troika ainda está por fazer. O processo está
envolto numa nuvem de dúvidas e a documentação sobre os vários
processos é escassa. Lembro um documento de 2015 do Tribunal de Contas
em que se colocavam sérias dúvidas sobre a atuação da Parpública,
holding que gere as participações empresariais do Estado, nomeadamente
no que diz respeito às sétima e oitava fases de privatização da EDP e da
segunda da REN.
O TC lançava reparos à
falta de transparência na escolha dos consultores, a falhas importantes
de informação e salientava que "numa perspetiva de racionalidade
financeira o timing imposto" para a concretização da privatização
representou para o Estado "um custo de oportunidade" por terem sido
realizadas num "enquadramento económico muito negativo", ao que se soma
"a perda de dividendos futuros, anualmente distribuídos por estas
empresas".
O período de aperto
financeiro por que estávamos a passar teve uma quota importante em
praticamente todas as decisões que o governo dessa altura teve de tomar.
Mas a verdade é que os governantes da altura aproveitaram a ocasião
para concretizar planos com muita ideologia e pouca atenção à realidade.
O
que hoje sabemos é que à custa desse aperto financeiro não só perdemos
os anéis como também os dedos. E não se infira que o autor desta artigo é
a favor do Estado-empresário. Muito pelo contrário. O que está em causa
é, por um lado, a forma negligente e obscura como os processos de
privatização foram feitos e, por outro, a maneira como não se olhou para
a diferente natureza das empresas a privatizar ou sequer em manter
algum controlo político sobre as estratégicas para o país.
Aliás,
a negligência nas privatizações em Portugal é uma espécie de traço
distintivo destes processos. As que aconteceram durante o cavaquismo - e
que era urgente serem feitas e visavam corrigir os crimes das
nacionalizações do período pós-25 de Abril - foram um monumento ao que
agora se chama promiscuidade entre poder político e económico. Digamos
que um olhar atento ao que aconteceu entre 1992 e 1999 faria que aquilo a
que hoje chamamos escândalos parecessem pequenas falhas. No entanto, é
de justiça recordar que nessas privatizações nunca se optou por vender a
privados tudo de uma vez e nunca se avançou para empresas que atuassem,
por exemplo, em monopólios naturais.
Há
uma passagem no citado documento do Tribunal de Contas que deve ser
recordada e que amiúde entra no nosso dia-a-dia e ameaça entrar mais:
"No decreto de privatização da EDP e da REN e o acordo de venda e de
parceria estratégica ... não foi prevista qualquer cláusula de
penalização para o seu incumprimento, pelo que, nestes dois processos,
não foram tomadas medidas legislativas que acautelassem os interesses
estratégicos do Estado português após a conclusão do processo de
privatização" (retirado de um artigo do Público de 29 de julho de 2015
de Ana Brito).
Tudo isto a propósito da
anunciada oferta pública de aquisição do capital da EDP. Melhor dito,
do resto do capital que ainda não estava nas mãos do Estado chinês, que
já detinha cerca de 28%. Com esta operação que - mais euro menos euro
por ação - terá brevemente o seu epílogo, a China torna-se proprietária
de 100% a EDP e, claro, mantém o controlo da REN. Ou seja, a China manda
em tudo o que diz respeito à produção e distribuição de energia
elétrica em Portugal. A privatização da REN foi um verdadeiro crime
contra o interesse público. Privatizar um monopólio natural é-o sempre,
sobretudo sem, como diz o TC, se acautelarem os interesses estratégicos
do país. E diz-nos a experiência de variadíssimos países que não há
concessão nem regulação que proteja dos desmandos, esses ainda mais
naturais. A privatização da REN seria sempre - ainda para mais da forma
que foi - um crime de lesa-pátria fosse qual fosse o comprador. Já a da
EDP pode ser discutida, sempre à luz do interesse da comunidade. O que
vai contra todo e qualquer interesse de Portugal é não haver uma
privatização da EDP, mas sim a nacionalização das elétricas portuguesas
por um país estrangeiro. E logo a China.
Em
primeiro lugar, privatizar obedece ao pensamento (que é o meu) de que o
setor privado gere melhor interesses empresariais do que o Estado. Ora,
ninguém duvidará de que um Estado quando é proprietário de uma empresa
não a gere em função do lucro mas em função do interesse político? No
fundo e no limite, há um conflito de soberanias latente. A China não
hesitará em defender os seus interesses, que, claro está, serão
empresariais ou não, e Portugal, ao abrigo da sua soberania, também o
fará.
Em segundo lugar, ser a China não
é o mesmo do que ser outro país qualquer. A China, quer seja pela
presença que já tem em Portugal quer seja, sobretudo, pela sua imensa
força em todos os campos, não pode ser confrontada como pode ser um
outro país e muito menos uma qualquer empresa por muito forte e
importante que seja.
Alguém ouviu um
responsável político sobre isto? Alguém escutou uma pequena comunicação
sobre o evidente acréscimo de risco para a nossa soberania? Alguém notou
um sequer insignificante comentário sobre o anunciado controlo completo
de um Estado estrangeiro sobre praticamente todo o setor da energia
elétrica em Portugal ? Nada. Silêncio. Um pequeno comentário do
Presidente da República que falava do mercado a funcionar. Qual mercado?
Um mercado em que um Estado controla tudo não me parece que possa ser
identificado por esse nome. Pior, um Estado estrangeiro que controla um
setor vital para toda a comunidade não é um problema de mercado, é sim
um problema político grave.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
20/05/18
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