02/05/2018

MÁRIO CORDEIRO

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1.º de Maio 
– trabalhadores e crianças

A exploração do trabalho infantil – errada e criminosa – não impede que as crianças e, sobretudo, os adolescentes não possam fazer certos trabalhos remunerados, embora apenas nas suas horas livres, nas férias e aos fins de semana

Celebra-se hoje o 1.o de Maio, Dia Internacional dos Trabalhadores, comemorativo das manifestações de trabalhadores de Chicago em 1886, em prol de melhores condições de trabalho, brutalmente reprimidas pelas autoridades. Durante muitos anos foi uma data proibida, depois demasiado conotada com certos setores políticos e, finalmente, um dia que cada um celebra como quer, sem preconceitos e sem se sentir pressionado, ou seja, com o descanso merecido para quem passa grande parte da vida a trabalhar.

Os pais trabalhadores O que tem o 1.o de Maio a ver com as crianças? Muito! Em primeiro lugar, todas ou quase todas as crianças e adolescentes são filhas de trabalhadores ativos, seja intelectuais ou manuais, rurais, da indústria ou de serviços. Atualmente, em Portugal, não apenas os pais, mas também as mães trabalham – o nosso país é um dos que têm a taxa mais elevada de mulheres em idade fértil com trabalho fora de casa –, e as implicações deste facto são grandes, tendo levado a enormes transformações no dia-a-dia das crianças. Todos damos por isso, mas não será hoje o motivo desta “conversa”.

O trabalho dos pais é uma forma de a criança poder beneficiar de maiores condições para o bem-estar e é bom pensar nos proventos dos pais e na significativa percentagem que deles se destina às crianças. Provavelmente, alguns gastos serão exagerados e alguns bens supérfluos ou fúteis, inadequados, caros ou desnecessários. No entanto, é do orçamento dos pais e do fruto do seu trabalho que vem a alimentação, o vestuário, o conforto, os brinquedos, os infantários e amas, livros e materiais escolares, a prática de atividades de lazer, etc., etc. E os vários indicadores (económicos, de saúde, de educação) revelam que as crianças portuguesas têm, sem margem para dúvidas, muito mais bem-estar do que tinham há alguns anos.

Vale a pena mencionar também os descontos que são feitos sobre os rendimentos do trabalho e que permitem ao Estado proporcionar, através dos impostos e do próprio trabalho de centenas de milhares de pessoas, serviços vários – saúde, educação, etc. – que vão beneficiar a criança, independentemente da opinião que tenhamos sobre o modo como esse orçamento é planeado e gerido e sobre a qualidade dos referidos serviços.

Trabalhos em casa e de colaboração com a família – um bom meio de aprender a vida Os trabalhos em casa, que ajudam à construção e manutenção da vida familiar, são indispensáveis. É muito pedagógico que as crianças e jovens se habituem a ajudar os pais, através de pequenos trabalhos desde que adequados ao seu desenvolvimento físico e às suas capacidades, não apenas em força, mas em destreza e compreensão, e não pensem que tudo lhes é devido, quais reizinhos sentados no sofá a teclar.

Arrumar o quarto, pôr e levantar a mesa, lavar a loiça, aspirar e limpar a casa, ou ajudar os pais nas fazendas, no cultivo ou a tratar dos animais – estas e outras são tarefas que as crianças e adolescentes deverão habituar-se a fazer, quer porque é da mais elementar justiça (se os pais não devem escravizar os filhos, a verdade é que eles trabalham e não podem ser eles próprios escravos dos filhos), quer porque aumenta o sentido de responsabilidade e maturidade e cria uma atmosfera de respeito e colaboração em objetivos comuns. Ou seja, faz parte da aprendizagem da vida e da preparação para a vivência democrática e participativa e da exercitação da sua própria autonomia, atual e futura.

Pequenos trabalhos remunerados A exploração do trabalho infantil – errada e criminosa – não impede que as crianças e, sobretudo, os adolescentes não possam fazer certos trabalhos remunerados, embora apenas nas suas horas livres, nas férias e aos fins de semana, com a sua concordância e adequados às suas possibilidades e capacidades, desde que não prejudiquem também o estudo e as suas outras atividades.
Para lá dos trabalhos de ajuda no dia--a-dia da casa já referidos, há por vezes pequenos trabalhos (lavar o carro, pintar paredes, passar textos no computador, tratar dos animais, passear o cão, etc.) que podem ser vistos como extras e, como tal, se forem bem executados, deverão até ser merecedores de uma recompensa (sem exageros) à qual a criança ou o adolescente darão destino (com supervisão dos pais, claro, mas com uma grande liberdade de opção).

É, pois, fundamental entender a necessidade do trabalho como meio de poder usufruir de alguns bens materiais e de-senvolver simultaneamente o gosto pelo trabalho como meio de satisfação e mesmo de entretenimento. A esmagadora maioria das crianças e dos adolescentes virão, mais cedo ou mais tarde, a ser parte da classe trabalhadora, seja em trabalhos mais intelectuais, seja em trabalhos mais manuais. Todos os empregos, porque honestos, merecem respeito e são parte da organização da comunidade a que todos pertencemos e de que todos necessitamos. Entender o trabalho de cada um como uma peça do puzzle social é indispensável para a aprendizagem da vida... e para que, afinal, o 1.o de Maio tenha algum significado na vida de cada um e da sociedade, para além de eventuais leituras políticas ou partidárias, que são importantes na manifestação social mas não devem ser entendidas como a expressão única da dinâmica dos cidadãos.

Bom feriado, bom trabalho para quem tem de trabalhar, e nunca esqueçamos as origens deste 1.o de Maio e como é obrigação de todos dignificar o trabalho e a sua prática, como elevação pessoal, social e civilizacional.

P. S. Seria muito útil, quando possível, os pais levarem as crianças a visitar o seu trabalho e falarem dele, bem como da relação que existe entre trabalhar, ser útil, ter sustento e o nível de vida e poder de compra que têm. A maioria das crianças, estou convencido, não entende nada desta relação, sobretudo quando quase tudo lhes aparece como evidente e sem esforço” – nos tempos atuais, é bom relacionar o trabalho com o resto da vida, e também as crianças entenderem melhor que os pais não vão sempre trabalhar com um sorriso na cara e que têm dias em que chegam a casa e, por causa do cansaço do trabalho, só lhes apeteceria emigrar para uma ilha deserta.

* Médico Pediatra


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01/05/18

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