Em Portugal, o racismo importa?
Portugal homenageou Marielle Franco. Onde esteve e onde está o país e a sua capacidade de indignação e de mobilização com os acontecimentos da esquadra de Alfragide, com as dezenas de mortes de jovens nas mãos da polícia, com o desalojamento das comunidades negras e ciganas?
No dia 21 de março de 1960, com os massacres de Sharpeville, o mundo acordou finalmente para a barbárie do regime do apartheid.
Esta chacina levaria a ONU a instituir o Dia Internacional de Combate
ao Racismo em 1969, que mais tarde, em 1976, viria a ser rebatizado pela
Assembleia Geral da ONU como o Dia Internacional para a Eliminação da
Discriminação Racial.
Infelizmente, 58 anos depois dos massacres de Sharpeville, o racismo e
todas as outras formas de violência conexas continuam ainda presentes
no quotidiano das pessoas racializadas.
Vários acontecimentos
trágicos nos últimos tempos vieram comprovar a realidade da vigência do
racismo. Na Europa, para além da ascensão de forças políticas populistas
racistas, a violência racista contra cidadãos não brancos e contra
imigrantes vai resultando em assassinatos pela extrema-direita ou pela
polícia.
A nível nacional, mais recentemente o país assistiu impávido e sereno
à publicação de um relatório internacional que afirma que o racismo, a
tortura e todo o tipo de violências são instrumentos de atuação das
forças de segurança, nomeadamente contra as populações negras e ciganas.
E que esta violência não é circunstancial nem inédita, mas sistemática.
O país assistiu ainda à acusação da quase totalidade dos elementos da
esquadra de Alfragide pelos crimes idênticos aos relatados neste
relatório com um incompreensível silêncio da classe política. E o país
quase não se incomodou com acusações tão graves contra as instituições
do Estado cuja função primacial é a de garantir a segurança de todos os
seus cidadãos, independentemente da sua origem étnico-racial e cultural.
Tanto
o relatório como a acusação aos 18 agentes da esquadra de Alfragide
revelaram o país verdadeiro no que toca ao racismo. Revelaram também,
através do silêncio que suscitaram, a falta de centralidade política da
questão racial na sociedade e no debate político em Portugal. O que
podia ter sido uma oportunidade para a sociedade e as instituições
encararem de frente o racismo na sociedade arrisca-se, mais uma vez, a
ser uma oportunidade perdida.
As mobilizações em torno do
assassinato de Marielle Franco surgem neste contexto e na semana em que
se celebra mais um Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação
Racial. Em Portugal, como um pouco por toda a parte, este vil
assassinato motivou e bem uma sentida mobilização. Em Portugal, para
além da mobilização social notável, o país político também homenageou
Marielle Franco através de uma resolução da Assembleia da República.
Mesmo achando curioso não ter sido referido uma única vez o racismo
naquela resolução, não tenho a menor dúvida de que foi um ato nobre
dentro da coreografia parlamentar.
Sabemos que a morte de Marielle
Franco está sedimentada na condição de ser mulher lésbica, favelada e
negra, com voz própria capaz de enfrentar a ideologia sexista e racista.
Condição essa que a expunha à violência e a tornava numa ameaça real
contra o reacionarismo ideológico, o conservadorismo sexista e homófobo e
o racismo estrutural.
IN "PÚBLICO"
21/03718
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