O segundo órgão de soberania
A democracia tem custos a que
nenhum português se opõe, mas importa que sob a capa democrática não se
estejam a permitir aplicações ilegais de fundos obscuros.
É frequente desculpar um ou outro acontecimento político menos
positivo com o argumento da juventude da democracia portuguesa. Mas, o
curioso é que à medida que a democracia se torna menos jovem mais
exemplos surgem sobre a fraca qualidade, a ética, e não só, dos
políticos portugueses. Vem isto a propósito da aprovação da designada
lei de financiamento dos partidos políticos.
Os
cidadãos/eleitores facilmente identificam dois dos poderes consagrados
na Constituição da República - Presidente e Governo -, mas tendem a
ignorar que os 230 deputados que têm assento na Assembleia da República
(AR) constituem o segundo órgão de soberania. Têm por missão, entre
outras, fiscalizar a acção governativa, mas tendem a considerar, no
colectivo, que têm um toque divino e podem actuar segundo as
conveniências de grupo ou individuais.
Já
estará esquecido do infeliz episódio das viagens-fantasmas ou do
usufruto de benefícios indevidos. Claro que se tratou de casos
individuais, mas que reflecte que o ser humano deputado nem sempre se
distingue daqueles, indivíduos, empresas, organizações sociais, que
fazem o que for preciso para sacarem - o termo não é sofisticado, mas é
sentido - dinheiros públicos.
Os grupos parlamentares,
constituídos por militantes e os designados independentes, resolveram
agora pela calada do dia e em quase total harmonia (excepto o CDS e o
PAN) alterarem alguns artigos da lei ainda em vigor e tão frequentemente
modificada. A ideia inicial seria responder a algumas críticas do
Tribunal de Contas. Mas já agora, o que os poderia impedir de fazerem o
bem comum, isto é, entre os partidos políticos pelos quais foram
eleitos?
Muito já foi escrito e comentado sobre as
principais alterações introduzidas. Após a mediatização e o devido coro
de críticas assistiu-se a algo impensável: a defesa do indefensável!
Seja de quem votou, mas que nem apreciava tanto assim o diploma, seja do
secretário-geral do Partido Socialista (e primeiro-ministro) que
continua a apoiar decisões que aconselhariam o silêncio.
Uma
das críticas mais mediatizadas refere-se à eliminação de um limite
máximo para os recursos financeiros obtidos com as angariações,
fundamentalmente pela quase impossibilidade de controlo. Ora, por trás
desta questão existe uma outra muito mais importante: qual a razão para a
necessidade de obtenção de fundos não controlados? A resposta só pode
ser uma: a sua aplicação em destinos obscuros ou, dito de outro modo, em
benefícios ilegais.
Muitos comentadores falaram da
importância de um debate público sobre o financiamento partidário,
acrescentando que até se poderia vir a concluir pela necessidade de
aumentar o financiamento do Estado. Isto porque "a democracia custa
dinheiro".
Defendo o papel insubstituível dos partidos
políticos bem como o financiamento público. Acontece que, como explicou
Marina Costa Lobo, Portugal já se encontra entre os países europeus com
maior financiamento através dos impostos dos cidadãos/eleitores.
A
democracia tem custos a que nenhum português se opõe, mas importa que
sob a capa democrática não se estejam a permitir aplicações ilegais de
fundos obscuros.
No dia em que escrevo esta crónica,
apenas se aguarda o veto político do Presidente da República. É a
penalização máxima possível para um comportamento indecoroso.
Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
04/01/17
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