09/01/2018

MANUELA ARCANJO

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O segundo órgão de soberania

A democracia tem custos a que nenhum português se opõe, mas importa que sob a capa democrática não se estejam a permitir aplicações ilegais de fundos obscuros.

É frequente desculpar um ou outro acontecimento político menos positivo com o argumento da juventude da democracia portuguesa. Mas, o curioso é que à medida que a democracia se torna menos jovem mais exemplos surgem sobre a fraca qualidade, a ética, e não só, dos políticos portugueses. Vem isto a propósito da aprovação da designada lei de financiamento dos partidos políticos.

Os cidadãos/eleitores facilmente identificam dois dos poderes consagrados na Constituição da República - Presidente e Governo -, mas tendem a ignorar que os 230 deputados que têm assento na Assembleia da República (AR) constituem o segundo órgão de soberania. Têm por missão, entre outras, fiscalizar a acção governativa, mas tendem a considerar, no colectivo, que têm um toque divino e podem actuar segundo as conveniências de grupo ou individuais.

Já estará esquecido do infeliz episódio das viagens-fantasmas ou do usufruto de benefícios indevidos. Claro que se tratou de casos individuais, mas que reflecte que o ser humano deputado nem sempre se distingue daqueles, indivíduos, empresas, organizações sociais, que fazem o que for preciso para sacarem - o termo não é sofisticado, mas é sentido - dinheiros públicos.

Os grupos parlamentares, constituídos por militantes e os designados independentes, resolveram agora pela calada do dia e em quase total harmonia (excepto o CDS e o PAN) alterarem alguns artigos da lei ainda em vigor e tão frequentemente modificada. A ideia inicial seria responder a algumas críticas do Tribunal de Contas. Mas já agora, o que os poderia impedir de fazerem o bem comum, isto é, entre os partidos políticos pelos quais foram eleitos?

Muito já foi escrito e comentado sobre as principais alterações introduzidas. Após a mediatização e o devido coro de críticas assistiu-se a algo impensável: a defesa do indefensável! Seja de quem votou, mas que nem apreciava tanto assim o diploma, seja do secretário-geral do Partido Socialista (e primeiro-ministro) que continua a apoiar decisões que aconselhariam o silêncio.

Uma das críticas mais mediatizadas refere-se à eliminação de um limite máximo para os recursos financeiros obtidos com as angariações, fundamentalmente pela quase impossibilidade de controlo. Ora, por trás desta questão existe uma outra muito mais importante: qual a razão para a necessidade de obtenção de fundos não controlados? A resposta só pode ser uma: a sua aplicação em destinos obscuros ou, dito de outro modo, em benefícios ilegais.

Muitos comentadores falaram da importância de um debate público sobre o financiamento partidário, acrescentando que até se poderia vir a concluir pela necessidade de aumentar o financiamento do Estado. Isto porque "a democracia custa dinheiro".

Defendo o papel insubstituível dos partidos políticos bem como o financiamento público. Acontece que, como explicou Marina Costa Lobo, Portugal já se encontra entre os países europeus com maior financiamento através dos impostos dos cidadãos/eleitores.

A democracia tem custos a que nenhum português se opõe, mas importa que sob a capa democrática não se estejam a permitir aplicações ilegais de fundos obscuros.
No dia em que escrevo esta crónica, apenas se aguarda o veto político do Presidente da República. É a penalização máxima possível para um comportamento indecoroso.


Professora universitária (ISEG) e investigadora. Economista

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
04/01/17

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