A criança e a protecção do seu
direito à dignidade pessoal
A presidente do Instituto de Apoio à Criança não tem dúvidas: "No Supernanny, houve violação do direito da criança" e o Ministério Público deve apresentar "uma providência cautelar no sentido da suspensão do Programa"
Já foi há mais de três anos que tive
notícias de um caso tenebroso que me fora apresentado doze anos antes,
durante o meu mandato de presidente da Comissão Nacional de Proteção de
Crianças e Jovens.
Creio que foi no início de 2004 que uma
delegação de três técnicas especialistas, uma delas Diretora da
Instituição e a outra com funções de supervisão, me procurou por ter
sido arquivado o processo que tinha sido instaurado para proteger uma
criança.
À data, a “Maria”, de dez anos, dotada de uma
inteligência superior, mas portadora de grave deficiência motora, e com
dificuldades de comunicação, conseguira contar os abusos sexuais que
sofria por parte do pai e como tudo era filmado pela mãe para ser
comercializado.
No Tribunal, não acreditaram nela, nem nas
profissionais que a acompanhavam e a criança continuou entregue aos seus
carrascos que até a retiraram da instituição especializada que
frequentava.
Acreditei na criança e fiquei como as técnicas: destroçada, mas sem nada poder fazer…
Mais
de dez anos depois, já enquanto representante do Instituto de Apoio à
Criança, tomei conhecimento durante uma reunião na Polícia Judiciária,
onde entidades públicas e privadas procuravam cooperar para ajudar as
dezenas de vítimas de um professor escuteiro em cuja casa foram
apreendidos igualmente milhares de ficheiros com imagens de abusos
sexuais praticados contra crianças entre os três e os dez anos, que
soube que o abusador da infeliz menina que entretanto atingira a
maioridade, se suicidara na cadeia na sequência da apreensão pela
Polícia Judiciária de milhares de ficheiros pornográficos, muitos deles
produzidos pelo próprio que assim vivia à custa da exploração sexual da
filha.
A Polícia Judiciária tinha sabido da existência deste
predador sexual por informações da Interpol, já que dez anos antes
ninguém acreditara na criança.
Foram decerto casos como este que
conduziram à redacção da Convenção do Conselho da Europa para a
Prevenção e o Combate contra os Abusos e a Exploração Sexual de Crianças
e também a diversas directivas europeias sobre esta matéria.
Tenho-me
apercebido que há sempre uma altura em que tudo é permitido, ou em que a
Lei parece não conseguir penetrar e que depois surge um momento em que
as normas melhoram um pouco, devagar, devagarinho, mas nasce uma
convenção ou vem uma diretiva e a lei vai mudando, com leves
transformações, é certo, mas chega e entra em vigor e tal e é nessa
altura que ficamos com expectativas mais fortes e que renasce a
esperança.
Na semana passada, soubemos também daquele caso muito
chocante em que um casal manteve treze filhos sequestrados, cheios de
fome e acorrentados, sem assistência médica e sem escolaridade, sujeitos
a crueldades e sevícias que prejudicaram de forma séria o seu
desenvolvimento.
Estes tratamentos degradantes são maus tratos
condenados na maioria dos Estados. Fazem parte do que consensualmente se
considera tortura, pelo que em quase todas as nações do Mundo são
comportamentos censuráveis e considerados criminosos.
E porquê?
Porque estes factos são extremamente devastadores para as vítimas que
sofrem não apenas lesões corporais, mas que ficam com consequências
graves a nível da sua saúde mental, designadamente com stress
pós-traumático. De forma que, avaliando a natureza dos múltiplos danos
causados, passou a entender-se que estava em causa um conjunto de bens
jurídicos violados como a integridade pessoal e a própria dignidade
humana, que mereciam uma proteção mais robusta.
Na verdade,
quando os bens jurídicos violados assumem natureza pessoal, temos de
analisar tudo com redobrado cuidado, porquanto sabemos que muitas vezes
até pode não estar em causa a integridade física, mas antes ações que
sabemos podem ter efeitos nefastos para a estabilidade psíquica das
crianças, afetando o seu desenvolvimento integral.
Ou seja, nem
todas as violações de direitos atingem de forma tão severa a dignidade
das crianças, mas todas provocam sofrimento e são ilícitas. Por isso,
costumo dizer que existem vários graus de perversidade nas violências
exercidas sobre as crianças e só relativamente aos graus mais elevados
há consenso. As outras violências, designadamente as de natureza
psíquica nem sempre reunem unanimidade, sendo portanto mais difícil
combatê-las, não obstante o sofrimento que causam às crianças vítimas.
Estão
neste caso, as violações aos direitos de personalidade, como o direito à
imagem, em que a devassa da sua vida privada pode causar danos graves e
persistentes para as crianças e os jovens e que por isso hoje já são
tutelados pela ordem jurídica quer a nível nacional, quer internacional.
Nem
sempre foi assim. Os direitos das crianças foram desconsiderados
durante muito tempo. Só em 1989, dez anos depois do Ano Internacional da
Criança, na Organização das Nações Unidas, os Estados acordaram num
conjunto de princípios e de Direitos de que as Crianças deviam ser
titulares e entre eles está o Direito à reserva da vida privada, no seu
artº 16º.
A Convenção contém normas inovadoras e esta é,
indubitavelmente uma norma muito forte, que torna abusiva a intromissão
na vida privada das crianças mesmo com consentimento dos pais, porque
como tenho vindo a referir, os direitos não são absolutos, em especial
os direitos dos pais relativamente aos filhos, que têm um fim de
proteção e segurança da criança.
Ou seja, se os pais não
prosseguirem esse fim de proteção, temos a figura do abuso do direito,
pelo que pode haver uma prestação de consentimento consistente em
utilização abusiva do direito, mais frequente quando este tem natureza
eminentemente pessoal, e passando a ser ilegítima a representação da
criança.
Vem isto a propósito do programa que a SIC já transmitiu
duas vezes e que insiste em passar outra vez, em que exibe crianças em
situações negativas que prejudicam a sua imagem e em que são filmadas na
sua intimidade, em violação do seu direito de reserva.
O Comité
dos Direitos da Criança da ONU chegou a fazer recomendações ao Reino
Unido no sentido de criticar a exibição livre do programa Supernanny,
justamente por entender que o formato do Reality show em causa violava o
direito à privacidade das crianças.
Temos poucas decisões sobre
estas matérias, até porque as normas legais se têm preocupado mais com a
criança espectador e não tanto com a criança que participa em
programas, pois embora já haja legislação que visa proteger a criança
que participa em espectáculos e em novelas, a atenção do legislador
dirigiu-se mais à questão do bem-estar, do repouso e da frequência
escolar.
O Tribunal da Relação de Évora produziu um acórdão em
Junho de 2015 no sentido de considerar legítimo que no âmbito de uma
ação de regulação das responsabilidades parentais tivesse sido decidido
provisoriamente não permitir a partilha de imagens de uma criança nas
redes sociais.
Esta decisão corresponde a uma nova perspetiva da
criança, como titular de direitos, num mundo em que a segurança a nível
do ciberespaço é também muito relevante, pelo que não podemos ficar
indiferentes perante situações que envolvem riscos acrescidos que
decorrem da partilha de imagens de crianças.
Estou convencida
pelo estudo, análise e pesquisa que fiz, que neste caso, o MºPº tem
legitimidade para, no cumprimento do seu dever estatutário de
representação das crianças, defender o seu direito à dignidade, bem
maior em que assenta a República Portuguesa, como estatui a Constituição
logo no seu artº 1º, e também o seu direito à privacidade e à
intimidade, nos termos do artº 16º da CDC, através da propositura de uma
providência cautelar no sentido da suspensão do programa.
No
caso do programa Supernanny, houve ainda violação do direito da criança a
uma boa imagem, visto que a repetição das imagens, que se vão manter na
Net e nas redes sociais podem prejudicar em elevado grau, o seu direito
a uma consideração social que não a humilhe e desvalorize junto dos
seus pares.
Manter o formato do programa é, pois, persistir na desproteção das crianças envolvidas, desrespeitando o seu superior interesse.
Tenho
esperança que este clamor, quer de entidades com responsabilidades na
defesa da criança, como a Comissão Nacional de Proteção de Crianças e
Jovens, o Instituto de Apoio à Criança, ou o Comité Português para a
Unicef, quer de outras estruturas e personalidades de mérito, como a
Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados, e Professores
Universitários de referência como os Professores Doutores Reis Monteiro,
Mário Frota, Manuel Sarmento ou Mário Cordeiro possa ainda dissuadir os
decisores da SIC.
Mas se continuar a não haver abertura por
parte da estação, não me parece que reste outra alternativa que não seja
a providência cautelar. Pela Dignidade das crianças!
E para que
não vejamos mais casos, idênticos aos que lamentamos no Estrangeiro de
adolescentes que não conseguem lidar com a exposição e com a devassa da
sua vida privada e que acabam com a decisão suicida e irreversível.
* Presidente do INSTITUTO DE APOIO À CRIANÇA
IN "VISÃO"
25/01/18
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