“Para Sempre”
Tenho para mim que não há pessoas mais interessadas na permanência da Autoeuropa em Portugal do que os seus trabalhadores.
Na ressaca de uns dias duros, sem disclaimer porque, perante
a morte, somos quase todos iguais. O desaparecimento de Pedro Rolo
Duarte, dono das palavras, e do Zé Pedro, dono de uma das músicas da
minha vida, justamente a que dá título a estas linhas, deixam-nos
vazios. Vazios de palavras, vazios de música, confrontados com um
espanto e uma tristeza colectivos que, volvido o impacto inicial, se
transformam rapidamente na histeria da compra de prendas. Há muito que
penso na voragem destes tempos, em que estamos permanentemente
conectados a algo e em corrida constante, não sabemos bem para onde e,
menos ainda, com que objectivo.
Tenho para mim que honrar os
mortos é, acima de tudo, relembrar o que de bom nos trouxeram e cuidar
dos vivos. Daí que, principalmente quanto ao primeiro, que posso dizer
ter sido meu amigo, guardo a sua generosidade de carácter, mesmo quando
discordava de mim. Principalmente, atrevo-me, quando discordava de mim. E
gostarei de ambos “Para Sempre”, sabendo que até este é, por definição,
finito mas que há obras que permanecem muito para além da existência
dos seus autores, incluindo também o livro com este nome, de Vergílio
Ferreira.
No mesmo transe em que ficámos algo entorpecidos pelas
últimas mortes, somos confrontados com notícias da Autoeuropa. Criou-se,
de certa forma, um mito com esta empresa, cuja dimensão tem feito os
cidadãos, armados em treinadores de bancada, emitirem as opiniões mais
estranhas, muitas vezes refastelados num sofá, ao sábado à tarde. O
truque é velho: colocar-se a opinião pública contra os trabalhadores,
imputando-lhes uma qualquer deslocalização que possa vir a ocorrer e
inventando-se prejuízos para o país. Tenho para mim que não há pessoas
mais interessadas na permanência da Autoeuropa em Portugal do que os
seus trabalhadores, da mesma forma que não alinho no esquema em que se
entrou de, cada vez que uma classe, seja qual for, reclama direitos, os
outros virem apontar-lhes o dedo, culpando-os pelo mal do mundo.
Se
há mal em Portugal, e há, seguramente que não está nos trabalhadores
desta empresa, como, por via de regra, não está nos trabalhadores de
qualquer outra empresa. Cada vez que acusamos uma dada classe dos males
do mundo e esquecemos os responsáveis tornamo-nos duplamente cúmplices e
perpetuamos um sistema em que os mais fracos acabam por ser tragados
por algo que não criaram.
Honrar os mortos, como disse, é também
cuidar dos vivos. E só se cuida destes tentando perceber as motivações
das pessoas, coisa que não tem sido feita. Esse é, talvez, o exercício a
que nos devíamos dedicar. Sempre. Para sempre.
IN "O JORNAL ECONÓMICO"
07/12/17
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