Em defesa da hipocrisia
O estado judaico - uma solução imposta por lei, hoje com fronteiras frágeis, porosas e duvidosas - é ele próprio uma forma (boa) de "hipocrisia", que só à conta da (boa) "hipocrisia" internacional tem sobrevivido.
A hipocrisia tem péssimo nome. Mas ela é como o colesterol: há a boa
hipocrisia e a má hipocrisia. Donald Trump desbaratou a primeira e
abusou da segunda, na sua decisão de reconhecer Jerusalém como a capital
de Israel, e de para lá mudar a embaixada dos Estados Unidos,
actualmente em Telavive.
Os
apoiantes da decisão celebram precisamente o fim de uma hipocrisia. Ela
existe, sim. Jerusalém não é só a capital simbólica e prometida de
Israel: Jerusalém é, de facto, a capital de Israel. É lá a residência
oficial do Presidente da República e do primeiro-ministro, a sede do
Governo e dos ministérios, da Universidade Hebraica e do Banco de
Israel; é lá que funcionam o Parlamento e o Supremo Tribunal, o Museu de
Israel e a Biblioteca Nacional. A soberania de Israel foi sempre
exercida a partir de Jerusalém.
Na verdade, a decisão dos Estados Unidos, que já foi tomada em 1995, tem
tido o apoio generalizado dos políticos americanos. Em 2008, na
conferência da AIPAC (o lóbi americano pró-Israel), o então candidato
Barack Obama foi claro: "Qualquer acordo com o povo palestiniano deve
preservar a identidade de Israel enquanto estado judaico, com fronteiras
seguras, reconhecidas e defensáveis, e Jerusalém deve manter-se a
capital indivisível de Israel." No entanto, também em 1995, os Estados
Unidos aprovaram uma espécie de moratória, de seis meses, até começarem a
concretizar aquela decisão. Essa moratória tem sido prorrogada desde
então. Sim, tudo isto é uma hipocrisia.
E depois há ainda a
hipocrisia suprema: a ideia de que o conflito israelo-palestiniano é
insolúvel porque ambos os lados têm razão. Não é verdade: ambos os lados
têm razões de queixa, mas não contem comigo para estabelecer um
paralelo perfeito entre a luta pela sobrevivência do estado de Israel,
uma democracia liberal reconhecida pela comunidade internacional, e o
anti-semitismo das forças políticas dos territórios e países seus
vizinhos, cuja política oficial é ainda hoje a aniquilação do povo e do
estado judaicos.
Ora, é exactamente por causa do perigo
existencial que Israel enfrenta que convém assegurar a contenção e
moderação dos seus inimigos. O estado judaico - uma solução imposta por
lei, hoje com fronteiras frágeis, porosas e duvidosas - é ele próprio
uma forma (boa) de "hipocrisia", que só à conta da (boa) "hipocrisia"
internacional tem sobrevivido. É esta "hipocrisia" que tem mantido viva a
ideia de que é possível a coexistência de dois estados e a partilha de
Jerusalém, a única solução plausível para uma paz duradoura. A
"hipocrisia" é aqui uma forma de defesa, prudência e pragmatismo. É o
que separa a civilização da barbárie, a diplomacia da guerra e a
validade de um determinado princípio da sua destruição às mãos da ideia
infantil de que qualquer princípio pode a todo o momento ser
concretizado integralmente.
Trump e os seus apoiantes
dizem que só agora, com esta decisão, estão reunidas as condições para
um novo e frutuoso processo de paz. Qual? Como? Ninguém explicou. Porque
o que o Presidente quis foi só alegrar a sua base eleitoral e desviar
as atenções dos muitos escândalos que o afectam. É a hipocrisia
oportunista dos pequenos merceeiros políticos. Quanto aos seus
apoiantes, estes estão convencidos de que só haverá paz entre judeus e
palestinianos quando uma das partes subjugar definitivamente a outra.
Talvez tenham razão, tragicamente. Mas enquanto não assumirem o que
pensam escusam de criticar a hipocrisia dos outros.
Advogado
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
12/12/17
* Um alerta com todo o respeito ao sr. dr. Mendes da Silva, não há colesterol mau, o LDL e o HDL são ambos bons!
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