Os juízes devem estar loucos
Algumas decisões dos últimos tempos mostram-nos
que Portugal não ouviu Gabriela Knaul em 2015. Desvalorizar num
tribunal a violência doméstica é não só criar um clima favorável aos
agressores como dar a bofetada derradeira à vítima
Nas últimas semanas Portugal tem sido confrontado com
decisões judiciais a fazer lembrar aqueles dois juízes do Supremo que
há mais de duas décadas conseguiram arranjar desculpa para a violação de
duas turistas no Algarve. Se na altura foi o abuso sexual o crime que
pôs a nu o conservadorismo, o machismo e até algumas teias de aranha de
alguns magistrados, agora é a violência doméstica.
O país tem evoluído, mas precisa de evoluir mais. É bom saber que
hoje dificilmente algum juiz tentaria atenuar uma violação, mas sabe a
pouco ver que ainda há (e não é só um) os que relativizam a violência em
contexto familiar.
Primeiro fomos surpreendidos com um acórdão do Tribunal da Relação do
Porto em que o juiz Neto Moura tenta atenuar a violência doméstica com o
facto de a vítima ter tido uma relação fora do casamento – e chega
mesmo a dizer que há países onde não só seria agredida, como ainda
morta: “O adultério da mulher é um gravíssimo atentado à honra e
dignidade do homem. Sociedades existem em que a mulher adúltera é alvo
de lapidação até à morte. Na Bíblia, podemos ler que a mulher adúltera
deve ser punida com a morte”.
Tudo isto é demasiado grave (incluindo a referência à Bíblia) e já dá
para ter uma ideia sobre o que poderá passar-se nas casas de muitos do
que têm a nossa justiça nas mãos.
Mas tudo piorou com uma notícia do “Correio da Manhã”, que dava conta
de que este juiz já é reincidente, tendo em 2010 reduzido a pena de um
homem condenado por agredir a mulher e a filha de quatro anos. Nesse
caso, o magistrado não só deixou claro que “não podem ser ignoradas as
referências a uma relação extraconjugal, que teria sido a causa próxima
de toda [a] situação conflitual”, como ainda conseguiu escrever que as
agressões foram “de pouca monta, não indo além de uns pequenos hematomas
e escoriações”, sem recurso a “qualquer instrumento ou arma de qualquer
espécie”.
O juiz Neto Moura já veio dizer que condena a violência doméstica,
alegando até que no caso deste ano sentenciou três anos de cadeia para o
agressor. Mas as suas decisões empurram-no para uma situação de
complacência com um dos crimes mais abjetos da sociedade atual.
O pior é que, quando já estávamos a recuperar destas mazelas, desta justiça que temos, levámos outra pancada.
O jornal “Público” revelou partes de um acórdão do Tribunal Judicial de
Viseu em que o coletivo ilibou o agressor, justificando que a agredida
era uma mulher “moderna” sem perfil de vítima. Completamente alheios ao
terror de quem vive com medo de denunciar, os juízes disseram acreditar
que “dificilmente a assistente aceitaria tantos atos de abuso pelo
arguido e durante tanto tempo sem os denunciar e tentar erradicar, se
necessário dele se afastando”.
Qualquer vítima que ouça coisas como estas de um juiz (ainda por cima perante o agressor) está a ser duplamente agredida.
Estes casos, a fazer lembrar a decisão dos juízes-conselheiros que no
Portugal de outros tempos diziam que as turistas foram violadas porque
se colocaram a jeito na “coutada do macho ibérico”, vêm dar razão à
missão da ONU que em 2015 veio a Portugal analisar a independência do
poder judicial.
Na altura, a relatora, Gabriela Knaul, afirmou que “os
magistrados judiciais e do Ministério Público devem evitar a reprodução
de preconceitos em decisões judiciais”.
Parece que ninguém lhe deu ouvidos.
IN "i"
22/12/17
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