A mulher adúltera
Não, não foi excessiva, como criticou o
presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a onda de revolta que se
ergueu na última semana sobre a decisão de um juiz do Tribunal da
Relação do Porto em torno da culpabilização de uma "mulher adúltera". A
indignação é um sinal de maturidade: consciência cívica do que é lesado,
quando uma instância do poder - um órgão de soberania - atenta contra
os direitos humanos onde as nossas melhores crenças sociais e políticas
se alicerçam.
Não se tratou de um
incidente ocasional, de um mero caso infeliz, mas de uma atitude
repetida, sistemática, agora detetada, que passou em branco, ao longo de
anos, por entre os pingos da chuva do sistema.
O
processo judicial da "mulher adúltera" terá seguido todo o percurso
formalmente estipulado: o Ministério Público insatisfeito com a decisão
do Tribunal de Felgueiras, que suspendeu a pena a dois homens que
sequestraram e agrediram violentamente uma mulher, recorreu para a
Relação. Mas os dois juízes que apreciaram a pena mantiveram-na e, assim
sendo, não há direito a recurso superior.
Mas não é a pena em si que motiva a
indignação, ou nos surpreende e fragiliza pela vulnerabilidade a que
percebemos estar expostos. O que choca é o recurso ao contexto do
adultério como fundamento natural, "compreensível", de atenuante do
crime de violência exercida sobre uma pessoa. O que nos agride é a
crueldade, o ressabiamento machista, expostos em mais do que uma
deliberação, o uso da justiça para promover uma visão do Mundo disforme,
legitimada sob a autoridade de uma decisão jurídica.
Quais
os deveres e limites profissionais de um juiz? Onde se estriba e avalia
a sua obrigação deontológica de lealdade aos princípios mais essenciais
da Lei da Republica do qual é representante, quando usa dos mais
esconsos preconceitos para fundamentar sentenças que criminalizam as
vítimas e legitimam a violência dos agressores? Onde jaz a
responsabilidade ética, formativa do sistema judicial? Abrir-se-á uma
averiguação; decisão assumida após a exaltação pública!
Não
basta pedir aos juízes prudência na linguagem e na forma como
fundamentam as decisões. O problema não é de forma ou estilo, mas de
conteúdo, valores humanos, substância crucial de um Estado de direito
democrático.
A justiça não é um mero
aparelho técnico preso em regras, mas um sistema vocacionado para a
defesa de princípios humanos e sociais.
É, pois, preciso mais: na inquietude da sociedade civil e na resposta do sistema.
*PRESIDENTE DO POLITÉCNICO DO PORTO
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
03/11/17
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