07/11/2017

JOÃO GOBERN

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As últimas horas

Se a estreia literária de Rui Maurício (n. 1967) somasse mais ironias e sarcasmos aos que a sua fértil imaginação nos vai passando ao longo das páginas em que faz espraiar três histórias distintas - ou, pelo menos, complementares -, talvez ficasse legitimado o recurso a uma palavra de ordem, velhinha de 40 anos, no mínimo, presumivelmente lançada pelos "anarcas" da época: "Tudo tem um fim, só a salsicha é que tem dois." Se há um nó, corredio mas impossível de desatar, a ligar os três andamentos de Com O Fim à Vista, ele traduz-se na omnipresença da morte. Que pode aparecer como fonte de novas angústias, como resolução para o desgaste provocado pelas insípidas rotinas ou como redenção para uma vida passada a sentenciar os outros, porventura de forma leviana, quase sempre de forma parcelar.

Fica entendido, daqui em diante, que não há grandes probabilidades, até em função da escolha deste momento determinante e terminal, de nos defrontarmos com quadros de leveza pitoresca, mesmo que, logo ao primeiro impacto, haja um protagonista a defrontar-se com Deus e com o Diabo, com os anjos e a reencarnação. Pouco importa, aliás, se o autor deixa escapar algumas reflexões contra aquilo que parece considerar o maniqueísmo de uma só alternativa, entre Bem e Mal, ou contra as balizas que essa dicotomia radical pode colocar na liberdade humana de raciocínio e de conduta. O mais interessante de A Dúvida (primeiro dos três compassos do livro) parece morar na circunstância de um ateu convicto, capaz de escrever ensaios sobre o assunto, ter uma hesitação (ia a escrever "fatal", mas haverá provavelmente formas menos equívocas para a classificar) à hora da morte - e se, afinal, Deus e o seu antagonista existem mesmo? Com essa singela reticência, Tobias, protagonista e defunto, vê-se forçado a uma série trabalhosa e criativa de diligências para conseguir "permissão" para reencarnar e voltar a morrer, dessa vez sem entreabrir a porta da incerteza. O conto, equilibrado, oscila entre a profundidade e a ingenuidade, acabando por nos convocar para "companheiros de estrada" numa viagem que remete para algumas das grandes questões da existência dos homens e, particularmente, para o mistério que permanece sobre o período post mortem.

No andamento seguinte, O Vazio, a abordagem é completamente diferente: lida com alguém que não consegue ir além de fugazes estímulos para prolongar a vida, que se deixa subjugar pela rotina e que, a espaços, só descobre uma ou outra escapatória nos sonhos. Tudo parece tornar-se-lhe penoso: o trabalho, o seu habitat, o indispensável contacto com os outros. A conclusão é lógica: "Eu, o grande vazio, já só posso é morrer. E comigo a humanidade. A grande humanidade tão cheia de nada." Para fechar este princípio de conversa, Rui Maurício escreve A Sentença, cujo título fica a dever-se a uma inusitada aproximação entre um juiz de carreira longa e um homicida reconhecido e condenado. O ponto de partida é fascinante: o magistrado encara uma série de dúvidas sobre as decisões que foi tomando ao longo da sua vida profissional e que, obviamente, afetaram a vida de muita gente. O criminoso chega a levantar a questão da sua própria culpa - não terá ele sido empurrado para os sangrentos desfechos pelos comportamentos daqueles que matou? Em última instância, não será ele a grande vítima, o instrumento "barato" para algo que estava definido mesmo antes da sua intervenção? Curiosamente, sem pretender dar uma resposta, o autor já deixara um alerta geral na introdução: "Todos nós somos vítimas, mas ninguém é inocente. Afinal, só existem deuses por causa dos demónios. E bem vistas as coisas, por aqui sempre se morreu com convicção." Mais nada: os dados estão lançados.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
06/11/17

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