As últimas horas
Se a estreia literária de Rui Maurício (n.
1967) somasse mais ironias e sarcasmos aos que a sua fértil imaginação
nos vai passando ao longo das páginas em que faz espraiar três histórias
distintas - ou, pelo menos, complementares -, talvez ficasse legitimado
o recurso a uma palavra de ordem, velhinha de 40 anos, no mínimo,
presumivelmente lançada pelos "anarcas" da época: "Tudo tem um fim, só a
salsicha é que tem dois." Se há um nó, corredio mas impossível de
desatar, a ligar os três andamentos de Com O Fim à Vista, ele traduz-se
na omnipresença da morte. Que pode aparecer como fonte de novas
angústias, como resolução para o desgaste provocado pelas insípidas
rotinas ou como redenção para uma vida passada a sentenciar os outros,
porventura de forma leviana, quase sempre de forma parcelar.
Fica
entendido, daqui em diante, que não há grandes probabilidades, até em
função da escolha deste momento determinante e terminal, de nos
defrontarmos com quadros de leveza pitoresca, mesmo que, logo ao
primeiro impacto, haja um protagonista a defrontar-se com Deus e com o
Diabo, com os anjos e a reencarnação. Pouco importa, aliás, se o autor
deixa escapar algumas reflexões contra aquilo que parece considerar o
maniqueísmo de uma só alternativa, entre Bem e Mal, ou contra as balizas
que essa dicotomia radical pode colocar na liberdade humana de
raciocínio e de conduta. O mais interessante de A Dúvida (primeiro dos
três compassos do livro) parece morar na circunstância de um ateu
convicto, capaz de escrever ensaios sobre o assunto, ter uma hesitação
(ia a escrever "fatal", mas haverá provavelmente formas menos equívocas
para a classificar) à hora da morte - e se, afinal, Deus e o seu
antagonista existem mesmo? Com essa singela reticência, Tobias,
protagonista e defunto, vê-se forçado a uma série trabalhosa e criativa
de diligências para conseguir "permissão" para reencarnar e voltar a
morrer, dessa vez sem entreabrir a porta da incerteza. O conto,
equilibrado, oscila entre a profundidade e a ingenuidade, acabando por
nos convocar para "companheiros de estrada" numa viagem que remete para
algumas das grandes questões da existência dos homens e,
particularmente, para o mistério que permanece sobre o período post
mortem.
No andamento seguinte, O Vazio,
a abordagem é completamente diferente: lida com alguém que não consegue
ir além de fugazes estímulos para prolongar a vida, que se deixa
subjugar pela rotina e que, a espaços, só descobre uma ou outra
escapatória nos sonhos. Tudo parece tornar-se-lhe penoso: o trabalho, o
seu habitat, o indispensável contacto com os outros. A conclusão é
lógica: "Eu, o grande vazio, já só posso é morrer. E comigo a
humanidade. A grande humanidade tão cheia de nada." Para fechar este
princípio de conversa, Rui Maurício escreve A Sentença, cujo título fica
a dever-se a uma inusitada aproximação entre um juiz de carreira longa e
um homicida reconhecido e condenado. O ponto de partida é fascinante: o
magistrado encara uma série de dúvidas sobre as decisões que foi
tomando ao longo da sua vida profissional e que, obviamente, afetaram a
vida de muita gente. O criminoso chega a levantar a questão da sua
própria culpa - não terá ele sido empurrado para os sangrentos desfechos
pelos comportamentos daqueles que matou? Em última instância, não será
ele a grande vítima, o instrumento "barato" para algo que estava
definido mesmo antes da sua intervenção? Curiosamente, sem pretender dar
uma resposta, o autor já deixara um alerta geral na introdução: "Todos
nós somos vítimas, mas ninguém é inocente. Afinal, só existem deuses por
causa dos demónios. E bem vistas as coisas, por aqui sempre se morreu
com convicção." Mais nada: os dados estão lançados.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
06/11/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário