A escolha e o contexto
Acho indecente que se escolha homenagear mais uma vez o missionário e não o índio, o português e não o escravo, o opressor e não o oprimido
O recente protesto contra a estátua do Padre António Vieira veio
reacender o debate sobre a forma como escolhemos contar e celebrar a
nossa história. Acho saudável. Há que começar a decapar a camada de cor
de rosa com que pintamos os nossos heróis e suas façanhas, e a ouvir
outras versões menos épico fantásticas e mais próximas da realidade
historiográfica.
Entendo as razões de quem quer homenagear PAV,
como homem brilhante, que deixou um legado literário importante e
advogou causas humanistas que à época eram impensáveis. Como entendo os
que defendem que o discurso do Presidente da República no Senegal foi
q.b., e que não faz sentido pedir desculpa pelos nossos antepassados, ou
mesmo julgar acontecimentos históricos com a hierarquia de valores que
temos atualmente. Ainda assim, tenho uma opinião muito crítica em
relação a tudo isto.
É óbvio que se analisarmos as figuras
históricas à luz dos valores atuais, todas terão pés de barro e serão
fortemente questionáveis. Tal como é óbvio que o PAV tem um legado que
importa valorizar e divulgar. Mas é preciso não esquecer o seu papel
enquanto agente do imperialismo português e da igreja católica, na
legitimação da escravatura e na aculturação forçada dos indígenas.
Reconhecer isso é importante, como foi importante o reconhecimento de
João Paulo II a respeito.
PAV defendeu os índios, mas não os
negros, e defendeu os primeiros, forçando a sua evangelização. Não foi o
único e pode até ter sido o “menos mau”, mas se há quem queira
homenageá-lo pelas coisas boas que fez, parece-me saudável que haja
também quem sublinhe o outro lado. Sobretudo perante a falta de
reconhecimento institucional da dívida histórica portuguesa para com os
povos que escravizámos e explorámos por séculos.
Se é assim tão
anacrónico reconhecer oficialmente a responsabilidade histórica de
Portugal no tráfico de escravos, não será igualmente anacrónico fazer
uma estátua de um missionário jesuíta, empunhando uma cruz em vade
retro, com três indiozinhos andrajosos em volta, em pleno 2017? Se não
há um memorial que seja (quanto mais museus ou monumentos) a lembrar os
seis milhões (!) de escravos que Portugal forçou a embarcar para o
Brasil e os índios dizimados para sustentar o nosso império colonial,
será legítimo fazer mais uma homenagem a um agente da nossa megalomania
ultramarina?
Temos dezenas de monumentos e alusões ao nosso
passado náutico, do Padrão dos Descobrimentos, à Ponte Vasco da Gama,
passando por uma Expo 98 inteiramente dedicada à nossa diáspora, mas não
temos uma única placa dedicada aos milhões que escravizámos. E é por
isso que acho indecente que se escolha homenagear mais uma vez o
missionário e não o índio, o português e não o escravo, o opressor e não
o oprimido.
O problema não é, portanto, o PAV, mas antes a escolha
e o contexto!
E fica claro, pelo debate, que os mitos luso
tropicalistas continuam na ponta da língua e do argumentário, tal como
continuam em grande medida nas páginas dos manuais escolares: “fomos os
primeiros a abolir a escravatura”, “nós misturámo-nos com os indígenas”,
“os africanos também escravizavam”, “os espanhóis mataram mais
índios”...
Escolhemos acreditar nisso e ignoramos os factos:
abolimos a escravatura em Portugal no final do século XVIII, mas nas
colónias isso só aconteceu oficialmente mais de cem anos depois e, ainda
assim, era comum o trabalho forçado até ao 25 de Abril; a miscigenação
não pode ser vista de uma forma romântica quando, na maioria dos casos,
aconteceu dentro de uma relação de poder desigual e de forma muito
violenta; de facto não foram os portugueses que inventaram a
escravatura, mas é certo que inventaram o tráfico humano e concretizaram
mais de 50% de todo o comércio negreiro que aconteceu no mundo; e
quanto aos índios, nem vale a pena estarmos a competir pelo papel do
“colonizador suave” depois de lhes termos roubado o território, de os
termos exterminado com doenças contagiosas e tentado “civilizar” através
da Bíblia.
Enfim, como cantou Elis – salve o navegante negro que tem por monumento as pedras pisadas do cais – e esperemos que dessas pedras, um dia, se ergam também as estátuas.
IN "VISÃO"
01/11/17
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