Manuel Maria Carrilho
Amor de pai
Carrilho tem idade, vivência e experiência suficientes para saber
que uma carta destas não explode apenas na mão de quem a recebe. Os
estilhaços atingem todos, a começar pelos que lançam a bomba.
Não é preciso ler toda a carta alegadamente escrita por Dinis
Maria Carrilho, para perceber o que o move e quem está por trás deste
gesto supostamente livre e voluntário. Bastam as frases sublinhadas nas
capas das revistas que se alimentam deste tipo de artigos para perceber o
teor da carta e o calibre de quem a escreveu. Ou mandou escrever.
“Faço tudo por amor aos meus filhos” diz e repete Manuel Maria
Carrilho. Não o conheço, nunca trocamos uma única palavra, mas vejo,
ouço e leio, não posso ignorar o que tem feito nestes últimos anos, em
que vive obssessivamente apostado em destruir a mãe dos filhos que tanto
diz amar. Acima de tudo, sei o que fazem os bons pais, por amor aos
seus filhos.
Pai que é pai preza o bem-estar e a sanidade mental dos seus filhos,
ponto. Nesta lógica, jamais deixaria que um deles escrevesse uma carta
assassina à sua mãe. Muito menos consentiria em encontrar maneiras de
lhe fazer chegar esta carta. Mais, nunca cederia o seu próprio
computador a um filho menor sabendo que ele queria enviar uma prosa tão
asquerosa e se, por acaso, o filho não o respeitasse e insistisse, não
deixaria que o mail seguisse sem ler e reler o que o filho tinha
escrito. Tão importante como tudo isto: um pai que ama os seus filhos e
faz tudo por eles, faria realmente tudo para evitar que terceiros
tivessem acesso ao escrito letal, e ele próprio morreria de vergonha se a
carta fosse revelada publicamente, pela simples razão de que custa
assumir ser pai de um filho capaz de tamanha perversidade.
Um homem que ama os seus filhos sabe que não podem matar a mãe no seu
coração. Primeiro, porque precisam dela e da certeza do seu amor,
depois porque mais cedo ou mais tarde isso se vira contra eles. Num
tempo mais à frente, quando forem crescidos e autónomos, vão ser capazes
de separar melhor as águas (seja porque ganharam distância crítica
relativamente aos acontecimentos ou porque a guerra entre os pais
separados já está extinta) e, nessa altura, podem arrepender-se
amargamente do que escreveram, mas já não haverá nada a fazer.
Finalmente, porque uma carta destas é, insisto, o harakiri do
próprio pai. Revela todo o falhanço de que um homem é capaz, ao não
educar os seus filhos e consentir (e, quem sabe, louvar) que se mostrem
no seu pior em idades tão precoces.
Manuel Maria Carrilho tem idade, vivência e experiência suficientes
para saber que uma carta destas não explode apenas na mão de quem a
recebe. Os estilhaços atingem todos, a começar pelos que lançam a bomba.
Tal como as vítimas de guerras maiores, também os seus próprios filhos
vão viver toda a vida com feridas que não cicatrizam, com ecos que não
se desvanecem, com marcas que não se apagam. Vão ter que viver para
sempre com o estigma de serem os filhos que ele não soube proteger
publicamente e vão sentir-se usados e abusados por quem diz que os ama,
pois uma certeza eles têm: uma carta desta natureza e com este conteúdo
não foi seguramente entregue nas redacções pela própria mãe.
Um pai de verdade que ama os seus filhos com autenticidade faz aquilo
que fizeram muitos outros que passaram pelo mesmo calvário das
separações e tentam compensar em casa o que consideram ser as falhas ou
fragilidades das mães. Um pai incendiário, cheio de ódio, raiva e
sentimentos de vingança não tem lucidez nem liberdade interior para
proteger os seus filhos. Muito pelo contrário, usa-os compulsivamente
como reféns, armas de arremesso e escudo de protecção. Para aniquilar a
ex-mulher é capaz de matar emocionalmente os seus próprios filhos.
Ora, um homem que verdadeiramente ama os seus filhos usa todas as
estratégias ao seu alcance para os proteger e jamais os lança às feras.
Nunca vi um pai chegar ao jardim zoológico e, de frente para a jaula dos
leões, empurrar os seus queridos filhos para serem devorados por eles.
Mas tenho visto Manuel Maria Carrilho fazer isso com as suas adoradas
crias. Leva-as pela mão, fala-lhes ao ouvido, dá-lhes colo e confunde-as
de forma a acreditarem cegamente que age por amor. Depois usa essa
amorosa cegueira para as entregar a abutres que as abocanham, as torcem e
massacram, amputando-as irremediavelmente da sua integridade afectiva,
moral e emocional.
São abutres todos os que se alimentam de notícias cujos protagonistas
são crianças e adolescentes vítimas de circunstâncias altamente
fragilizantes que, de um dia para o outro, os deixam desprotegidos, e os
fazem sentir-se pressionados e esticados por todos os lados. Dar de
comer a estes abutres com cartas tenebrosas, declarações de ódio e
promessas de vingança que os engordam e mantêm a pairar é uma
selvajaria. Usar os próprios filhos como alimento, servindo-os em
bandeja de ouro, é abjecto. Argumentar que se age por amor a eles é
obsceno.
Um pai que ama os seus filhos e deixa de amar a mãe deles, pode
divorciar-se e separar os mundos, mas não pode rasgar os filhos ao meio.
Seria insano querer ficar com uma metade para si e deixar a outra
metade à mãe porque fisicamente não são divisíveis (se fossem, tenho a
certeza de que muitos homens e mulheres com a fibra de Carrilho já
teriam optado pela estratégia salomónica, tudo para o bem dos queridos
filhos e sempre por amor a eles, claro), mas pode encontrar meios de
partilhar o tempo dos seus filhos, formas de os amar e proteger, de os
acompanhar no seu crescimento e de cuidar da sua formação e evolução.
Um bom pai sabe tudo isto e, felizmente, há muitos pais separados
capazes de resgatar os seus filhos das dores do divórcio. Pais e mães
com discernimento e capacidade de relativizar as acções dos ‘ex’, que
conseguem ajudar os filhos a crescer, recuperando o equilíbrio e
minimizando os sofrimentos que todas as separações implicam. Proteger os
filhos menores de maus tratos, sejam eles físicos, morais ou emocionais
é um dever imperativo de todo o pai e toda a mãe.
Ao longo dos últimos anos temos assistido à escalada de uma guerrilha
parricida. Temos visto um homem cheio de ódio pela ex-mulher que a todo
o momento jura vingança, ameaça, castiga, difama e acumula processos em
tribunal. Um homem que não se cansa de dar entrevistas e usa a sua voz
(e as poucas migalhas de credibilidade que lhe restam) para dizer apenas
coisas sórdidas, infames, sobre a mãe dos seus filhos. Um homem que
argumenta todo o tempo que age por amor aos filhos, mas não se importa
nada com o ódio que destila por todos os poros, nem com o facto de este
mesmo ódio ser o exemplo mais activo, mais tóxico e mais contaminante
para os filhos de sua mãe. A herança que Manuel Maria Carrilho deixa aos
seus próprios filhos fica para sempre manchada pelo visco do asco que
sente pela mãe deles e não se cansa de demonstrar.
O cúmulo de declarações online, mais as pequenas e grandes notícias
ou vídeos na TV e, ainda, os escritos de sua autoria nos jornais e
revistas são ataques tão devastadores como as ofensas, ameaças e
agressões pessoais reais. Tudo isto é uma marca indelével que fica na
memória destas duas crianças a quem foi destruído, para já, todo o
património afectivo da infância. Dinis Maria e Carlota deixaram de poder
puxar o filme atrás para rever bons momentos em família porque todos os
anos das suas curtas vidas foram arrasados e já só existem escombros.
Mais à frente vão perceber que não naufragou apenas a infância, mas
também o sentido profundo de pertença e de família, bem como noções
fundamentais sobre o amor e o respeito. “Children see, children do”,
dizem os especialistas em desenvolvimento. Nesta lógica, não espanta
que Dinis Maria se disponha a escrever uma carta hedionda à sua própria
mãe, dizendo coisas graves numa terminologia que custa a acreditar que
seja a de um pré-adolescente de 12 anos (a idade que tinha na altura em
que mandou esta carta por mail através do computador do seu pai), pois o
exemplo que tem em casa é esse mesmo, de ofender e injuriar.
Por tudo isto e muito mais que infelizmente está à vista de todos,
tenho pena dos filhos de pais que, por amor a eles, os expôem, os
desprotegem e os agridem, ou deixam agredir dia após dia. Os filhos de
Bárbara Guimarães e Manuel Maria Carrilho mereciam melhor sorte do que
serem para sempre apontados na escola, reconhecidos na rua e citados nas
revistas pelas piores razões. Se este pai, que faz tudo pelo amor dos
seus filhos, tomasse o peso da cruz que lhes põe aos ombros e os
condenou a carregar neste longo martírio, sucumbiria ele próprio ao seu
peso insuportável e sentiria na pele o que é ser arrastado na lama como
eles, desprotegido, ofendido e indefeso. Amor de pai não é isto, é
exactamente o oposto.
IN "OBSERVADOR"
05/09/17
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