A cultura da ignorância
Nunca foi tão perceptível, a falta de mundo e de preparação e solidez cultural, da classe dirigente portuguesa. A ortodoxia dos números é a cultura inculta de que alguns se alimentam.
«A televisão é um instrumento permanente do ‘divertissement’.(...) é
uma cultura do esquecimento e uma criação do esquecimento sobre o
esquecimento». Eduardo Lourenço
A cultura da ignorância, presente nas sociedades contemporâneas,
europeias e ocidentais, prisioneiras do ‘achismo’ e do generalismo, da
mediocridade, do voyeurismo e do exibicionismo primários, está a
alimentar aquilo a que poderemos chamar de ‘utopia das pequenas e
simples coisas’.
Utopia essa provocada pela tal ‘cultura da ignorância’ que grassa em
várias áreas da sociedade, de diferentes condições económicas e
sociais.
Mas não nos iludamos. A cultura da ignorância já leva tal vantagem – e
tem provocado (e provoca todos os dias) tantos bloqueamentos nas nossas
sociedades contemporâneas – que vamos pagar um preço muito alto pelas
desestruturações sociais e culturais que ela tem vindo paulatinamente a
provocar. Além de ter produzido muitos dependentes da sua triste
existência.
E não é despiciendo referir que é profusamente alimentada e
defendida, diretamente e indiretamente, por muitos dos velhos e
sobretudo novos media.
É um exemplo do ‘estado das coisas’, dos tempos em que vivemos. Em que o velho mundo tem vindo a claudicar.
Um mundo que parece caduco, em desuso. Em valores de vida, em padrões
éticos e morais. E não só de moral pública, mas de uma ética social,
alicerçada na valorização do trabalho, do mérito, do risco, da verdade,
da coerência, da seriedade, do respeito pela tradição e pela memória
consuetudinária.
O novo mundo vive, alimenta-se, de muitos destes contrários.
Sobretudo à conta de uma postura de desvalorização das pequenas coisas
da vida.
Para muitos, a vida só é vida se estiver exposta nas redes sociais,
nas aplicações do universo da internet, na ditadura da imagem, na
ampliação do que é imediato, partilhado em direto. Na supremacia do
prazer pelo prazer enquanto valor de vida.
Para os cultores desse mundo novo, carregado de bloqueamentos,
estrangulamentos e nós górdios, o que conta é o ‘imediatismo’, o ‘estar
em direto’, o ter animus mediático. O ter eco, presença mediática. O
‘aparecer’. Sobretudo se estiver no circuito do aparecimento diário,
alimentado pela narrativa obsessiva de que o que conta é partilhar
espaço e tempo no mundo da internet e do audiovisual.
Poder-se-á perguntar: afinal o que é ser ignorante nos tempos atuais?
É não ser muita coisa que se devia ser. E ser outra coisa que não se
devia. Mas é sobretudo ser destituído de um conjunto de valores de vida
que atendem à vivência individual e coletiva – em que se desvalorizam
cada vez mais as humanidades, esmagadas pela ortodoxia dos números.
Desvalorização das humanidades e dos valores de vida do mundo clássico.
Desconhecimento das artes, da cultura, da história, etc.
Exemplos não faltam. Das coisas maiores às menores – ou, melhor
dizendo, normais. Com a desvalorização do estudo, da profundidade dos
saberes, em favor da opinião com recurso ao Google, à net. Com a
desvalorização do livro, do estudo aturado das matérias, da profundidade
da sua comparação. Com a desvalorização da memória. Com a
desvalorização do rigor científico em favor do ‘achismo’ suportado por
meia dúzia de minutos de pesquisa online e cinco dedos de conversa com
um conhecido de conveniência.
A sociedade em que vivemos julga-se muito superior e culta, mas em
muitos domínios está capturada pela ignorância. Pela ditadura do
imediatismo, pela dependência do generalismo.
Infelizmente temos uma sociedade que, em muitos domínios, vive
obcecada pelos números e pela imagem – e paralisada pelo que é mais
material do que espiritual. Isto não são críticas – são constatações. Do
que são os tempos em que vivemos. De uma sociedade que não respeita o
silêncio e valoriza o ruído. Em que o caráter e a coerência vacilam cada
vez mais perante o chico-espertismo e a mentira.
Uma sociedade que não quer ter nada a ver com a memória. Sobretudo
com a memória que lhe traga a vergonha de perceber que os ‘saberes’ são
‘pequeninos saberes’. E que tais ‘saberes’ são o contrário da genética
da nossa identidade, baseada no humanismo, na herança judaico-cristã, na
dignidade da pessoa humana.
O pior de tudo é que os protagonistas da cultura da ignorância são
hoje piores ou mais ignorantes do que os bárbaros dos idos tempos de
Roma, em termos comparativos.
Essa elite do exército da ignorância, na maior parte dos casos, não
leu o que tinha de ler, sobretudo dos clássicos. E, o pouco que leu, foi
tarde. E mesmo assim parece não ter percebido o que leu. Talvez a
‘utopia das pequenas coisas’, que aqui e ali se observa, o regresso à
natureza, ao que é genuíno, faça frente a esta cultura da ignorância –
mudando a natureza de alguns dos protagonistas e levando-os a ler e a
perceber gente como George Steiner e Eduardo Lourenço.
Mas existem muitos mais. Será que ainda vamos a tempo? Talvez sim,
talvez não. Mas só depende de nós. Uma coisa é certa: nunca tivemos
tantos ignorantes em lugares de responsabilidade. Pública e não
pública.
IN "SOL"
11/09/17
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