08/09/2017

ANDRÉ BARATA

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Lisboa: a paz, o pão, 
o turismo e a habitação

Falando direto: o debate autárquico na capital sobre o problema da habitação tem sido um jogo da cabra cega em que ninguém toca na vaca sagrada.

O turismo é uma boa experiência humana e a sua democratização é bem-vinda. Considerar que o turismo não é para todas as bolsas ou que os bairros históricos são só para alguns é alinhar num elitismo que nenhuma política decente deve servir. O turismo deve ser tão inclusivo como qualquer outra relação social. Mas isto é válido, segundo um elementar princípio de reciprocidade, para as várias posições em que as pessoas se podem encontrar numa relação de turismo: a fazer turismo, a conviver com o turismo que é feito onde vivem ou a viver do turismo. Dispensarmo-nos dessa reciprocidade não tem qualquer justificação a não ser a hipocrisia.

Não se pode usar a defesa do direito ao turismo para escancarar as portas à sua mercadorização, promovendo o consumo selvagem das cidades pelo mercado turístico. O problema nunca foram os turistas, a não ser talvez para uma elitizinha que não gosta de ver chinelos no Chiado. O problema sério está em quem vê nos turistas um potencial de exploração e o quer aproveitar para lá do limite do que é sustentável.

É este o debate que tem de ser feito e bem depressa, antes que a cidade fique devastada e porque estamos a poucas semanas de validarmos políticas autárquicas para os próximos quatro anos. Em democracia, os cidadãos eleitores têm de ter uma palavra a dizer sobre a vida na cidade onde vivem e votam. E neste momento não há nada que esteja a afectar mais rapidamente a vida de quem vive em Lisboa do que a desregulação do mercado do turismo. Estamos a falar de Lisboa, mas poderia ser do Porto.

Não são os turistas que têm de ser regulados, mas quem vive do turismo. E este assunto é talvez desconfortável para um significativo número de proprietários lisboetas, que não se poupam a trocar arrendamento de longa duração pelo arrendamento de curta duração como forma de maximizar o seu lucro. É uma escolha social e urbanisticamente poluente, com externalidades para os vizinhos e para os equipamentos sociais.

Mais importante: cada apartamento dedicado ao alojamento local é uma casa intencionalmente retirada ao mercado de rendas para residentes, portugueses ou estrangeiros. E a ausência de regras que limitem este negócio tem um efeito colateral ainda mais devastador, que é a competição de investidores a comprar casas com o único intuito da sua máxima rentabilização, fazendo desequilibrar o preço do mercado imobiliário.

O resultado imediato é o chão a fugir a quem de facto precisa de o habitar. Ironicamente, expulsa-se a vida local, à medida que os apartamentos da cidade vão sendo configurados para receber turistas a coberto de um marketing que lhes vende a ideia de imersão na vida local. Esventram edifícios inteiros de casas com 3, 4, 5 assoalhadas correndo o risco de transformar a cidade numa monocultura de T0 de bom gosto standardizado para uso de quem está de passagem. Um uso que está a excluir quem permanece quando só quem permanece pode realmente dar uma vida sustentável aos sítios. É por isso que são estes que votam.

É preciso mesmo que a discussão não fuja para falsos pontos, como o de uma xenofobia da turismofobia, como se vai vendo em muita opinião publicada. A fobia não é aos turistas mas a quem explora ao máximo o turismo. E é em relação a isto que é urgente actuar e há uma discussão de políticas a fazer em que estranhamente se revela um enorme atraso no que se propõe para Lisboa, comparando com as medidas que foram tomadas noutras cidades muito turisticamente atractivas na Europa ou nos Estados Unidos. Paris, Berlim, Londres, São Francisco, Nova Iorque têm hoje estabelecidos diversos limites ao arredamento de curto prazo que conseguiram conter o aumento das rendas e o forçado abandono das cidades pelos habitantes locais.

Há dois limites particularmente importantes que se têm consensualizado: a inibição do arrendamento de casas inteiras, que promove o alojamento local numa base de partilha tal como foi concebido originalmente, com os proprietário como residentes; e a promoção do arrendamento esporádico, através da inibição do arrendamento de curta duração durante mais do que x dias por ano. Estas medidas de contenção têm sido implementadas desde 2014 por vontade política dos residentes, e têm sido aplicadas muitas vezes com o concurso da própria plataforma Airbnb.

Há qualquer coisa que está a falhar quando se fala de cosmopolitismo e não se olha ao que se faz nas outras grandes cidades cosmopolitas. Quando nenhuma das principais candidaturas que se estão a apresentar às eleições autárquicas para Lisboa propõe o tipo de soluções já implementadas com sucesso nessas cidades, o que parece mesmo é que se está a defender um privilégio conveniente de proprietários “senhorios” de turistas. Mesmo que para isso se tenham de encher os programas eleitorais de uma série de medidas, quase sempre demasiado onerosas, tardias, quando não fantasiosas, que só aparentemente enfrentam o problema dos inquilinos em Lisboa. Falando directo: o debate autárquico na capital sobre o problema da habitação tem sido um jogo da cabra cega em que ninguém toca na vaca sagrada.

Pois bem, o nosso desafio às candidaturas autárquicas é ver qual é capaz de se chegar à frente e pôr, preto no branco, que vai inibir o arrendamento local de casas inteiras e de forma contínua, impondo tectos de número de dias por ano de arrendamento e de percentagem da casa posta a arrendar. Seja dentro ou fora dos bairros históricos.

Não se corrigem más práticas encobrindo-as e comprando a paz social com dinheiro público. Corrigem-se com boa regulação e legislação, já praticadas com sucesso nas grandes cidades do mundo. Nem com umas quotas de pudor – pouco importa se máximas para alojamento local, se mínimas para residentes – quando tudo  permanece liberalizado dentro da quota nos bairros históricos, tudo liberalizado fora do círculo dos bairros históricos, ou seja, nos bairros residenciais de uma cidade suficientemente pequena para se poder fazer quase toda a pé.

Diante da gentrificação da cidade em curso, quem vive e trabalha em Lisboa vê-se completamente desprotegido e em risco iminente de expulsão. Não por ordem de ninguém, mas pela inevitabilidade, obviamente apenas aparente, do mercado.

IN "O JORNAL ECONÓMICO"
07/09/17

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