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A faculdade que transformou
uma aldeia em cidade
Uma cooperativa de ensino superior com cursos de saúde instala-se em Gandra, Paredes, nos anos 1990. A economia local cresceu, a aldeia passou a vila, a vila a cidade. O instituto universitário tem agora a maior percentagem de alunos estrangeiros do país e poderá ser a primeira instituição privada a receber um curso de Medicina.
Em 1990, quando as máquinas começaram a abrir buracos na terra para
construir o primeiro polo da CESPU (Cooperativa de Ensino Superior
Politécnico e Universitário) em terrenos disponibilizados por um dos
fundadores, havia um restaurante e um prédio com uma loja de móveis na
antiga EN15, que ligava Porto a Vila Real. Pouco mais. Ainda não havia
autoestrada, nem bancos, nem cabeleireiros e salões de estética, nem
pizarias e hamburguerias, nem gabinetes de projetos de arquitetura na
rua central.
Gandra, no concelho de Paredes, era uma aldeia com pouco mais de cinco mil habitantes.
Hoje vivem lá sete mil pessoas e é há 14 anos uma cidade multicultural.
Com a unidade de ensino universitário com maior percentagem de alunos
estrangeiros do país, 32,7%, mais do dobro dos 12% da média nacional.
São 405 estrangeiros em 1238 estudantes, sobretudo franceses, espanhóis e
italianos. Nos cafés, restaurantes, no campus universitário, falam-se
várias línguas. No café Molete, ao lado da faculdade, ouve-se italiano.
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A funcionária Cátia Nora já se habituou a essa diversidade, atende os
alunos sem problemas. Quando não percebe, faz perguntas até entender.
«Gandra era só campos e tudo mudou com a faculdade. Ninguém pensava
encontrar aqui um Pingo Doce, que abriu há um ano», comenta. O prédio do
Molete nem sequer existia no início dos anos 90. «As urbanizações
aumentaram e até a nível cultural está diferente.»
O ano letivo está a terminar, há exames marcados, o parque de
estacionamento da universidade está cheio, há poucas mesas vagas na zona
de estudo, mais de metade dos lugares da biblioteca estão ocupados, os
alunos conversam nos corredores, nas escadas, no bar. Vanessa Marcelino,
que tirou o curso em Gandra, dá uma aula de Anatomia em francês para
uma turma do primeiro ano.
Os alunos, todos franceses, analisam os membros inferiores, fazem
perguntas, tiram dúvidas. «Veem as coisas nas mãos e ficam
entusiasmados. São aplicados, vêm com um objetivo, e ao fim do primeiro
ano já falam português», diz a professora. Na CESPU, os alunos
estrangeiros têm aulas em francês no primeiro ano, quatro a seis horas
de português por semana. No segundo ano, misturam-se com outras turmas e
antes de irem para estágio fazem uma prova de português. Se não estão
preparados, têm de reforçar as aulas de língua portuguesa.
A CESPU tem quatro edifícios em Gandra. Numa sala, uma aula de
fisioterapia sobre musculatura, noutra aprende-se a desvitalizar um
dente, ali ao lado fazem-se próteses, no auditório há uma aula em
francês sobre o córtex cerebral. Nos laboratórios do instituto de
investigação, que envolve 98 doutorados, 40 alunos de doutoramento e 94
de mestrado, trabalha-se de bata e quase em silêncio. Nos últimos três
anos, este departamento publicou 408 artigos em revistas internacionais.
A freguesia cresceu à volta da CESPU que apresentou em outubro
passado uma candidatura para a abertura de um curso de Medicina. Se for
aceite, será a primeira instituição privada a ter um curso nessa área.
Fora do sistema público foi a primeira a ter Medicina Dentária e a
primeira a firmar uma parceria público-privada com o Serviço Nacional de
Saúde, com o Hospital Senhora da Oliveira, em Guimarães.
A antiga EN15 é agora uma avenida com prédios e várias casas
comerciais. Os 140 lugares da residência universitária de Gandra,
inaugurada em dezembro de 2015 num edifício recuperado por um grupo de
investidores, estão totalmente ocupados por alunos estrangeiros – só um é
português. É um prédio com cinco pisos, cozinha comunitária em cada
andar, refeitório no rés-do-chão, lavandaria, lugar de garagem. As
mensalidades oscilam entre 400 e 560 euros.
Na esplanada da residência, Fadil, Marion e Elisa, todos franceses,
almoçam antes de mais uma tarde de aulas, enquanto Ilda Santos, dona de
uma papelaria e centro de cópias, ao lado da faculdade, regressa ao
trabalho. Há 17 anos mudou de vida, deixou de ser costureira e abriu um
negócio por causa da faculdade. E não tem mãos a medir. «Gandra era uma
aldeia, a universidade veio trazer interesse económico, movimento e
muita juventude.»
O Mestrado Integrado em Medicina Dentária é o que tem mais alunos
estrangeiros: 316 ao todo, quase metade dos 735. O francês Loick
Pourbaix, de 22 anos, é um deles. Está no quarto ano e voltará a Lille
quando terminar o curso, dois dentistas da sua cidade garantem-lhe
trabalho. «Está a ser uma boa experiência e estou muito feliz. Fazemos
um trabalho que exige muita prática.» Bata branca, olhos no computador e
no registo de dados, Loick está na clínica universitária da CESPU,
espaço com 50 compartimentos de dentista – é a única clínica de uma
faculdade que está aberta das 09h00 à meia-noite de segunda a sexta, não
fecha em agosto, disponível à população a preços mais acessíveis.
Em França, Loick tentou entrar em dentária duas vezes e não
conseguiu. Cruzou-se com um professor que fazia a ligação com a
faculdade portuguesa e não hesitou. «Estou muito contente, é esta
faculdade que me permite fazer o que gosto.» E já fala português.
Denni Scavome é italiano, de Vicenza, perto de Veneza, e quando
chegou a Gandra também não sabia uma palavra de português. Agora sabe.
Tem 27 anos, não conseguiu entrar em Medicina Dentária em Itália. Era
canalizador durante o dia, estudava prótese dentária à noite, e foi aí
que um professor lhe falou da escola de Gandra. «Tinha o meu salário e
deixei a minha vida, a minha família em Itália. Foi uma revolução.» A
componente prática do curso agrada-lhe. «Temos uma clínica que nos deixa
aprender durante o curso e é muito importante saber usar as mãos. Temos
oportunidade de trabalhar com materiais profissionais e com pacientes.»
Denni quer ser um bom médico dentista. Se tudo correr bem, terminará o
curso em 2020 e então decidirá se regressa ou não a Itália. Gandra é uma
cidade tranquila que o ajuda a estar focado nos estudos.
Paula Barbosa não tem qualquer dúvida que assim é. A instituição de
ensino mudou aquela terra. Há quatro anos, tomou conta de um restaurante
colado à faculdade. Adaptou a ementa ao gosto dos alunos, refeições
vegetarianas no menu, 12 pratos do dia à base de grelhados, mais saladas
e legumes, todo o tipo de omeletes. E saber falar francês ajuda. «A
faculdade deu outra vida a Gandra, na restauração não havia quase nada e
hoje, de rotunda a rotunda, em 800 metros, há 12 a 15 restaurantes.»
O italiano Marco Günther, aluno do segundo ano de Medicina Dentária,
mora por cima do restaurante de Paula. Tem 37 anos, deixou a mulher e os
filhos de 2 e 9 anos em Trento, para ser dentista. Vai matando saudades
por Skype e acredita que o esforço valerá a pena. As poucas vagas em
Itália, as várias tentativas para entrar no curso, e a indicação de um
professor que tinha a filha a caminho de Gandra, foram determinantes.
Concorreu, entrou em Portugal.
Em Itália, trabalhou num laboratório de próteses, teve o seu próprio
negócio, e decidiu voltar a estudar para ser médico dentista. «É o meu
sonho e é para o bem deles, dos meus filhos e da minha mulher.» Mas
custou voltar a pegar nos livros. «A minha escola não me preparou para
uma faculdade assim. Não é um trabalho só de conceitos, também é
prático, é preciso saber mexer com as mãos. E o meu cérebro atirou-se de
novo ao estudo.»
Lucia Lorena de la Cruz está a 11 mil quilómetros e 12 horas de voo
de casa, em Lima, no Peru. É em Portugal que quer estar para fazer a
especialidade em cirurgia ou implantologia. Tem 26 anos, está no último
ano de Medicina Dentária, a terminar a tese sobre a prevalência dos
dentes inclusos. Depois quer arranjar emprego, tratar de tudo para se
inscrever na Ordem dos Médicos.
Um congresso na Universidade Peruana
Cayetano Heredia com dois professores da Gandra habituou-se à diversidade, a faculdade já faz parte da
paisagem. Sandrine Ribeiro tem um cabeleireiro com vista para a
residência universitária. Não se queixa do movimento, deixou de ter um
dia de folga na semana, agora trabalha de segunda a sábado. Nasceu em
França, filha de pais emigrantes, voltou há 19 anos para Baltar, terra
dos pais. «Se não fosse a faculdade não tínhamos vindo para aqui.» E foi
por causa da CESPU que montou o seu negócio naquele local. «Antigamente
isto era só montes, se não fosse a faculdade não havia nada.» As alunas
francesas são clientes assíduas. «É cabelos, é unhas, só fecho ao
domingo.»
Exportar o modelo de ensino para fora da Europa, captar alunos
europeus, investir na especialização, têm sido as bases da CESPU. A
crise demográfica, a abertura de vários estabelecimentos de ensino
públicos na área da saúde, a inconstância do ensino privado, não
passaram ao lado da instituição. Pelo contrário. «Temos de viver em
função do que produzimos e não podemos baixar as guardas porque temos de
ter proveitos para pagar os salários aos colaboradores da instituição»,
diz António Almeida-Dias, presidente do conselho de administração da
CESPU, doutorado em Medicina.
A necessidade espicaçou a vontade de ser diferente. «Decidimos nunca
abandonar o princípio da especialização, somos especialistas na área da
saúde. A tendência para ir para cursos baratos é enorme, mas resistimos
sempre e mantivemos cursos pesados do ponto de vista de tecnologia.» A
componente prática e as parcerias com dezenas de instituições também
fazem parte da estratégia. «Assentamos esta área da saúde no saber
fazer, na aquisição de competências profissionais, porque o conhecimento
científico é algo que está ao alcance das pessoas muito facilmente, o
que é difícil é aprender a fazer. E isto faz que os nossos alunos,
quando terminam os cursos, tenham um grau de autonomia elevado.»
Há alunos que acabam o curso e vão para o estrangeiro, os mercados
internacionais ficam de olho na qualidade desses profissionais, há uma
curiosidade à volta da cooperativa de ensino. Nuno Tiago, fisioterapeuta
do Manchester United, é um exemplo. Curso tirado na CESPU, experiência
internacional. «Não queremos ser mais uma escola para o mercado
nacional, queremos uma escola para o mercado global», sublinha
Almeida-Dias.
Neste momento, a procura dos alunos estrangeiros é três vezes
superior ao número de vagas. O trabalho de captação de alunos, sobretudo
europeus, começou em 2012 e está a dar frutos. Luís Silva, da direção
da CESPU, lembra que a cooperativa marca presença «em feiras de promoção
de ensino superior pela Europa». Em cinco feiras por ano em Paris e
Bordéus, três em Roma e Milão, uma em Madrid. Há ainda trabalho feito
junto de agentes locais de promoção através dos media sociais. E estarão
presentes em feiras nas escolas do Brasil.
«O investimento na captação tem diminuído. Este passa a palavra
tem-nos facilitado a vinda de novos alunos. Se tivéssemos três vezes
mais vagas elas seriam ocupadas», diz Miguel Martins, responsável pela
CESPU Europa. Mesmo assim, há novos mercados como o Brasil e a Índia
debaixo de olho.
UMA HISTÓRIA COM 35 ANOS
Tudo começou há 35 anos, em 1982, em São Roque da Lameira, Porto. No
ano zero, a CESPU tinha 250 alunos. Em 1995, mudou-se para Paredes.
Neste momento, em Gandra, o Instituto Universitário de Ciências da Saúde
tem cinco licenciaturas, dois mestrados integrados de Ciências
Farmacêuticas e Medicina Dentária, sete mestrados, especialidade em
Ortodontia e um doutoramento em Ciências Biológicas aplicadas à Saúde.
Tem mais dois institutos politécnicos de saúde, em Vila Nova de
Famalicão (15 cursos e 478 alunos) e Penafiel (oito cursos e 450
alunos). Ao todo: 2166 alunos, 1651 portugueses e 515 estrangeiros. E um
corpo técnico com 347 professores, 164 dos quais doutorados. Uma
licenciatura custa entre 4000 e 6500 euros por ano.
A CESPU detém 80% do Hospital Particular de Paredes, 25% do Hospital
Particular de Barcelos, e 100% dos Anjos da Noite, rede de cuidados
domiciliários, em Lisboa. Tem parcerias com Angola, onde está desde 2006
no Instituto Superior Politécnico de Benguela com cursos de saúde, com a
Universidade de Barcelona, com a Universidade Privada de Marraquexe
onde começará com quatro cursos no próximo ano letivo. E colabora na
reestruturação de cursos em Dakar, no Senegal.
Texto Sara Dias Oliveira
Fotografia Pedro Granadeiro
* Uma história como a do país, cheia de socalcos.
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