Isto não é uma crónica,
é um vómito de indignação
Quando morrer, não quero a vossa hipocrisia em torno do meu caixão. Basta-me que a sombra de Cristo ou de um dos seus Anjos se apiede, mesmo de longe, ainda que de muito longe, da minha alma pecadora. Não quero nenhum fariseu junto ao nosso diálogo
Não perdoo à Igreja nunca ter pedido perdão aos portugueses pela sua
colaboração activa com a Ditadura e as iniquidades decorrentes dela, a
sua total indulgência, desde a primeira hora, com a injustiça, a
crueldade, a desigualdade, a intolerância, os campos de concentração
(Tarrafal, São Nicolau)
a
monstruosa polícia política, a violência da censura, o desprezo pelas
mulheres, a guerra colonial, a perseguição aos estudantes, aos
operários, aos camponeses, a desavergonhada defesa dos
ricos, as missas
para as criadas, as homilias em que exortavam à obediência aos patrões,
a violência para com os sacerdotes e os bispos que ousaram levantar-se
contra o Estado Novo, a forma como abençoaram as centenas de milhares de
rapazes mandados para África combater as aspirações dos povos
colonizados, mandando capelães abençoar aquele horror, apoiar aquele
horror, santificar aquele horror
(eu estava lá e vi)
em
nome da luta contra o comunismo ateu, em nome da defesa dos valores
cristãos, em nome da tolerância, em nome de Cristo. Porque carga de água
não tem sequer a simples dignidade de pedir desculpa? Porque carga de
água finge esquecer-se? Porque carga de água este silêncio? Eu sou
cristão e aprendi a ser fiel até à morte como está escrito no Livro e
pergunto: como tem coragem de tocar na Bíblia, como tem coragem de ser
hipócrita para com o Senhor? O capelão do meu batalhão em África era um
pobre jesuíta que se queixava das instruções que o obrigavam a fazer a
apologia do colonialismo em nome do Deus e não tenho a menor dúvida que
Jesus o cuspiu da Sua boca. Porque não pede perdão por ter afastado
tanta gente da Virtude com as suas atitudes, as suas homilias, até com a
utilização ignóbil das pobres crianças de Fátima a quem Nossa Senhora
pediu em português
(que outra língua saberiam elas?)
para
rezarem pela conversão da Rússia comunista, elas que nem sabiam o que
comunismo queria dizer, manobradas sem vergonha pela hierarquia
eclesiástica. O que terá sofrido o nosso capelão
(Tenho de fazer isto, tenho de fazer isto, dizia ele)
obrigado
a louvar a guerra santa, obrigado a prometer o Paraíso aos nossos
mortos, criaturas inocentes condenadas a dois anos e tal de um
sofrimento injusto. E a Igreja, passados mais de quarenta, permanece em
silêncio, completamente alheada da sua culpa. Isto entende-se? Isto
aceita-se? Isto apaga-se? Claro que os filhos das classes altas não iam
para a guerra. Conheço filhos dessas classes altas poupados a África com
desculpas inacreditáveis. Conheço os seus nomes e conheço as desculpas,
desde “incompatibilidade psicológica com o Exército” (posso citar
nomes) até “incontinência urinária” (posso citar nomes), até “pé chato”
(posso citar nomes), até classificações aldrabadas durante a
especialidade (posso citar nomes), e é impossível que a Igreja não
soubesse disto. Soube, claro, colaborou. E até hoje nenhuma voz oficial
dela se ergueu, nenhuma voz oficial dela protestou, nenhuma voz oficial
dela pediu perdão a Portugal, nenhuma voz oficial dela pediu perdão aos
portugueses, nunca os sucessivos cardeais roçaram sequer este assunto
quanto mais falar nele. Pelo contrário: abençoaram o Estado Novo que
perseguiu os sacerdotes que ousaram, ainda que só timidamente, levantar a
voz contra isto tudo. Perseguiram-nos, expulsaram-nos fizeram-lhes a
vida negra. Nem disso a Igreja a que pertenço tem vergonha? Um bocadinho
de vergonha ao menos? Limitou-se a arranjar bispos castrenses que
aceitaram, apadrinharam, foram cúmplices desta situação. Não temos uma
Igreja de Cristo, temos, sob muitos aspectos, uma Igreja hipócrita e
complacente. Cristo não foi nunca hipócrita nem complacente: Porque é
que a Igreja portuguesa o é? Tenho o maior orgulho no meu País, não
tenho o menor orgulho nesta Igreja. Se Cristo aqui estivesse
vomitá-la-ia da sua boca por não ser fria nem quente. Meu Deus será que
nem arrependimento existe? Será que pensa que a memória dos homens é
curta? Será que pensa que os portugueses esquecem? Será que não se
importa de ser vendilhão do Templo? Será que acredita que vai ficar
impune aos olhos do Senhor? Será que imagina que o Senhor não sabe? Será
que toma Deus por parvo? Será que cuida que São Paulo, por exemplo, não
a varreria? Onde estão as palavras do Senhor? Os Seus ensinamentos?
O
Seu exemplo? Ainda que em linguagem aparentemente críptica Cristo foi
sempre muito claro. E quem quiser ouvir que oiça. A ditadura acabou em
1974, há quarenta e três anos portanto. E nem uma voz até hoje? Nem um
simples pedido de perdão, nem uma confissão fácil
– Errei
não
existe nenhuma humildade honesta neste silêncio, não existe o simples
assumir de uma culpa, de um erro formidável, de um silêncio indecente.
Dói-me na alma que a minha Igreja, o meu Deus sejam amesquinhados e
esquecidos pelos que se dizem Seus filhos. Tenho vergonha. Tenho nojo.
Tenho pena de vós que pagareis por isto. Será que um simples pedido de
desculpa não alivia a alma? Parece que não. Por isso, quando morrer, não
quero a vossa hipocrisia em torno do meu caixão. Basta-me que a sombra
de Cristo ou de um dos seus Anjos se apiede, mesmo de longe, ainda que
de muito longe, da minha alma pecadora. Não quero nenhum fariseu junto
ao nosso diálogo. Quereria um Homem Justo. Um Homem Justo bastava-me.
Onde, na hierarquia da Igreja, da minha pobre Igreja, ele estará?
IN "VISÃO"
15/06/17
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