Pensar mal o terrorismo
Dir-se-á que há pouco a fazer para combater o terrorismo se a sua
natureza é esta que partilho. Não, há muito a fazer, mas o que pode ser
feito não acontecerá sem mudar de paradigma cultural e legal.
Será muito provavelmente inútil tentar a devolução dos seus
bilhetes ou os dos seus filhos para o festival de Verão que se aproxima.
Na verdade, a possibilidade de ser feito um novo atentado num concerto
de música é tão grande como o mesmo ser feito num jogo de futebol
importante, numa feira empresarial, ou num interface de transportes em
hora de ponta. Ou seja, qualquer sítio ou acontecimento que reúna massas
e valor mediático é um possível alvo de terrorismo. Esta é a primeira
dimensão onde estive até há muito pouco tempo, e durante 25 anos, a
pensar mal o terrorismo contemporâneo. O padrão de que o alvo tinha que
simbolizar, nem que de modo muito ténue, o inimigo, não existe hoje.
Para o terrorista contemporâneo, o alvo tem apenas de possuir um
potencial de espectacularidade.
Será provavelmente ainda mais inútil tentar entender a morfologia da
entidade terrorista, algo que também aprendi como essencial. Dos
anarquistas atomizados do século 19, às organizações de níveis estanques
do século 20, passando pela proposta de entidades celulares de
Appadurai, que continuo a partilhar com os alunos, nenhuma me parece
válida hoje em dia.
Ao pensar Manchester, Paris, Bruxelas e o último londrino, penso que a
morfologia deixou de existir. Por outras palavras, penso que a
morfologia está reduzida ao indivíduo que age sozinho inspirado por uma
ideia. E penso também que o faz porque tem em seu poder a arma essencial
contemporânea, a grande plataforma virtual e de comunicações.
Até aqui há muito pouco tempo, o possível simpatizante da ideia e do
combate terrorista tinha que se revelar, por muito pouco que fosse.
Tinha de comprar o livro, ou os livros, tinha de ir ao local da
conferência clandestina, tinha de correr o risco de se mostrar pronto
para o recrutamento.
Não hoje. A plataforma, desde que “ele” tenha acesso, educa-o,
mostra-lhe, dá-lhe mil e um documentos de doutrina. E, principalmente,
através dos fóruns e “chats” fechados, dá-lhe a essencial comunidade de
consolo e incentivo, a todo e em qualquer momento.
A única dimensão em que continuo a pensar com alguma utilidade o
terrorismo contemporâneo é o seu núcleo ideológico. A vítima é
insignificante para o terrorista, já que a vê apenas como um instrumento
para concretizar o seu objectivo único, levar o medo a toda a
comunidade inimiga.
Dir-se-á que há pouco a fazer para combater o terrorismo
contemporâneo, se a sua natureza é a que partilho aqui. Pelo contrário,
há muito a fazer, mas uma parte fundamental do que pode ser feito não
pode ser feito sem um mudança total de paradigma cultural e legal.
Não se pode fechar a plataforma virtual, permitindo apenas o acesso
de cada cidadão mediante registo prévio. Não se pode decretar que
famílias, escolas e indivíduos informem sobre todos aqueles que
detectaram ter um comportamento desviante, como, por exemplo, mau
aproveitamento escolar. Não se pode restringir o acesso de passageiros a
aviões low-cost. Ou seja, não se pode por em campo uma meta-estratégia
de prevenção porque esta viola os nossos valores.
No entanto, sem esta meta-estratégia todo aquele que se considera marginalizado poderá procurar o terrorismo.
* Nascido em 1969, José Vegar foi correspondente de guerra, é Mestre em Comunicação, Cultura e Tecnologias de Informação, e pós-graduado em Jornalismo.
José Vegar trabalhou no jornal Público, Semanário, Expresso, 24 Horas, Independente e Tal e Qual, colaborou com as revistas Grande Reportagem, Bulletin of Atomic Scientists, Sábado, Fortuna, City, Maxim, Livros, Jornalismos e Jornalistas e Janus. Em 2002, foi galardoado com o Grande Prémio «AMI – Jornalismo contra a Indiferença». Em 2000, recebeu o Grande Prémio Gazeta.
23/05/17
.
Sem comentários:
Enviar um comentário