16/04/2017

MARIA FILOMENA MÓNICA

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Os casamentos nulos

Se há coisa que me seduz é a polémica. Por isso, decidi responder ao pe Portocarrero de Almada. Penso que agnósticos, como eu, têm direito a falar sobre o que se passa dentro e fora da Igreja Católica

Há dias, o pe Gonçalo Portocarrero de Almada decidiu criticar alguns apontamentos por mim escritos no jornal Expresso (4.3.2017) sobre «a anulação dos casamentos católicos» Se há coisa que me seduz é uma polémica. Por isso, decidi responder-lhe, mesmo sabendo que de nada serve, porque quem é da Opus Dei, como é o seu caso, nunca terá em devida consideração quem se lhe opõe.

Dou de barato a sua afirmação de que «A doutrina canónica sobre o matrimónio é complexa, porque exige conhecimentos teológicos e jurídicos». Quem os não tem – como eu – não deveria meter a foice em seara alheia. Em primeiro lugar, julgo que esta concepção aristocrática é obsoleta, dado que a Igreja inclui, além do Papa, dos cardeais e dos sacerdotes, os fiéis. Em segundo lugar, penso que agnósticos, como eu, têm direito a falar sobre o que se passa dentro e fora da Igreja Católica, mesmo correndo o risco de não serem capazes de distinguir alguns conceitos, tais como a diferença entre «anulações» e «declarações de nulidade».

A minha falta de cultura teológica só em parte me pode ser atribuída. Educada durante 13 anos num colégio de freiras nada aprendi para além da Avé Maria, dos Sete Pecados Mortais e, claro, do hino que começa com as seguintes palavras: «Queremos Deus homens ingratos/Ao pai supremo, ao redentor/ Zombam da fé os insensatos/Erguem-se em vão contra o Senhor». A responsabilidade pelo meu analfabetismo religioso não se pode atribuir às freiras do Colégio das Doroteias mas à posição do Vaticano no que diz respeito às mulheres. A latente misoginia da Santa Sé traduz-se não só no facto de as mulheres ainda não poderem celebrar a missa mas na sua ignorância quando comparadas com a dos padres. Portadoras de uma educação teológica medíocre, obviamente não conseguem transmitir aquilo que não conhecem.

Se hoje posso falar da Igreja Católica como mais à vontade do que sucedia na minha adolescência deve-se a algumas leituras, como, por exemplo, o livro de Diarmaid MacCulloch A History of Christianity, e a conversas com os amigos, fossem eles judeus, anglicanos ou católicos (os últimos exibindo ideias bastante diferentes das de Portocarrero de Almada), quando vivi lá fora.

Como é evidente, não foi minha intenção infamar a «justiça eclesial». Limitei-me tão só a citar declarações do papa Francisco e a relembrar a minha própria experiência. Não retiro uma vírgula ao que disse, especialmente na matéria da anulação do casamento (deixo-me de bizantinices canónicas). Pelo baptismo, sim, «sou filha de Deus», mas não é verdade que, através desse acto, partilhe do saber divino.

Portocarrero de Almada é doutorado em Filosofia pela Universidade Pontifícia de St. Cruz em Roma. Pode saber imenso de doutrina católica, mas nada sabe de Sociologia, o que por vezes faz falta. Nesta disciplina existem coisas que ele poderia usar sem grandes apetrechos estatísticos (uma mera correlação bastaria). Desafio-o, por conseguinte, a que procure nos arquivos da Igreja a lista dos casamentos «anulados» em Portugal ao longo dos últimos 100 anos, a fim de verificar a origem social de quem a tal recorreu. Dado que, segundo li na imprensa, o acto da anulação custa actualmente uma quantia que vai dos 2.500 e 10.000 euros, presumo que nessa lista não encontrará pobres.

Aliás, ninguém melhor do que Portocarrero de Almada para nos fornecer dados sobre a justiça eclesial, ou seja, a forma como o dinheiro tem ou não sido determinante na anulação dos casamentos.

Já que falo em dinheiro, é altura de mencionar não só os «escândalos» financeiros que se verificaram há alguns anos no seio do Vaticano, como a ausência de uma investigação às finanças da Igreja portuguesa. Isto é tanto mais necessário quanto, em Portugal, a Igreja recebe avultados fundos públicos, o que, em geral, é escamoteado. É neste habitat que os rumores se multiplicam. Não posso provar ser um facto aquilo que a minha mãe pensava sobre a forma de se obter a anulação do casamento mas, conhecendo-a como a conhecia e ocupando ela lugares importantes na Acção Católica, é pouco plausível que acreditasse em fábulas.

Com ar superior, Portocarrero de Almada declara ainda que «os juízes eclesiásticos, para além de jurisconsultos, são indulgentes e misericordiosos pastores que, por certo, lhe (a mim) relevam esta gravíssima ofensa» (o facto de ter afirmado que as anulações do casamento era coisa de ricos). Não preciso de jurisconsultos católicos para nada. Muito menos do seu perdão.

Não se pense que tudo quanto escreve Portocarrero de Almada é claro. Alguém é capaz de me explicar o que, a certa altura, declara: «É verdade que o casamento ‘rato e não consumado’, ou seja celebrado validamente mas sem que tenha chegado a haver a união dos cônjuges, pode ser dissolvido pelo papa que, depois da consumação, já o não pode desfazer.
No entanto, pode haver casamentos válidos entre cônjuges que não têm entre si relações sexuais, como também há casamentos nulos entre pessoas que conjuntamente tiveram geração»? Eu devo ser burra, porque não entendo esta tese.

Nascido em Haia, em terras outrora pertencentes aos Habsburgos espanhóis que dominaram o Sacro-Império Romano-Germânico, talvez que Portocarrero de Almada imagine que a Igreja ainda manda nos povos europeus. Engana-se. Todos os dias, neste Continente, o número de católicos diminuiu.

Aliás, não será com atitudes como a sua que conseguirá manter os fiéis na Igreja, nem, muito menos, conquistar novos. Como tem sentido de humor, o que verifiquei por ocasião do lançamento de um livro seu, aconselho-o a ver o sketch dos Monty Python intitulado The Spanish Inquisition. Em nota mais séria, poderá ainda ouvir a cena 2 do acto III do Don Carlo de Verdi, quando os flamengos, que vêm pedir ao rei autonomia para a Flandres, acabam estornicados num auto-da-fé organizado pelo Grande Inquisidor.

Ao ouvir hoje esta obra-prima operática fui assaltada por uma dúvida. Será que Elizabeth de Valois poderia ter solicitado ao Vaticano a anulação do seu casamento com rei D. Filipe II? Penso que sim, mas tenho de acabar, pois desejo consultar alguns jurisconsultos católicos sobre este importante assunto.

IN "OBSERVADOR"
14/04/17

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