ESTA SEMANA NA
"VISÃO"
"VISÃO"
Bataglia, o facilitador premiado
Em abril do ano passado, o homem do Grupo Espírito Santo em África disse nada saber sobre as transferências para Santos Silva. Em janeiro, e em troca de liberdade, Bataglia veio a Lisboa incriminar Ricardo Salgado e dar explicações sobre €29 milhões que recebeu do GES. O que contaram um e outro à Justiça?
Se há uma figura-chave na Operação Marquês, essa figura é Hélder
Bataglia, o luso-angolano que durante anos foi uma espécie de ponta de
lança dos negócios do Grupo Espírito Santo em Angola, no Congo e até na
China. O homem que lançou as escadas para o nascimento do Banco Espírito
Santo Angola (BESA), fazendo a ponte entre Ricardo Salgado e José
Eduardo dos Santos; que chegou a passar férias com o então mais reputado
banqueiro de Portugal e que, a 5 de janeiro, numa sala do Departamento
Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), incriminou Salgado.
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No
verão de 2016, já era claro para os investigadores que “todas as
operações suspeitas” de um intrincado circuito financeiro, montado no
estrangeiro para que milhões acabassem nas contas de Carlos Santos Silva
(suspeito de ser o testa de ferro de José Sócrates), tinham em comum
este nome que poucos conheciam em Portugal até rebentar o escândalo dos
submarinos – Hélder Bataglia – mas que já era bastante conhecido do
Ministério Público. Também já era claro que os fundos que chegaram às
contas de Santos Silva desde 2006 tinham saído dos cofres do BESA (de
que Bataglia era administrador) ou da Espírito Santo Enterprises, a
sociedade que não aparecia nos organogramas nem nas contas do Grupo
Espírito Santo (GES) e que o Ministério Público suspeita ser uma espécie
de saco azul do grupo.
Seriam precisos meses para que
Hélder
Bataglia viesse a Lisboa “entregar” Ricardo Salgado. Para que
explicasse, ao que apurou a VISÃO, um total de 29 milhões de euros
recebidos na Suíça via Grupo Espírito Santo, entre 2006 e 2009. E para
que, depois, Salgado desmentisse a sua versão e garantisse ao Ministério
Público não ter dado ordens para fazer transferências para Carlos
Santos Silva ou quem quer que seja.
A investigação sabia que 12
milhões de euros tinham circulado entre o suposto saco azul do GES e
Carlos Santos Silva, tendo como primeiro intermediário Hélder Bataglia e
segundo intermediário Joaquim Barroca, o patrão do grupo Lena que
passou meses em prisão domiciliária por suspeitas de corrupção ativa,
fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais na Operação
Marquês. Sabia também que outras transferências apontavam para José
Paulo Pinto de Sousa, um primo de Sócrates residente em Angola e
referenciado no caso Freeport. Hélder Bataglia tinha de ser uma
peça-chave, pensavam os investigadores. Afinal, o empresário
luso-angolano conhecido por ser um facilitador de negócios, por
“fazê-los acontecer”, era uma figura omnipresente no processo, parecendo
unir todas as pontas.
Bataglia era acionista de Vale do Lobo. E
também acionista da Akoya, a sociedade suíça de gestão de fortunas de
que Salgado era cliente e que está no centro da operação Monte Branco.
Consigo terá levado como sócio Álvaro Sobrinho, o angolano que se
destacava nos escritórios do BES em Lisboa como um atuário brilhante,
até ao dia em que Bataglia conseguiu que se abrissem as portas de uma
filial angolana do BES em Luanda (o BESA) e sugeriu a Salgado o nome de
Sobrinho para presidente-executivo.
Estávamos em 2001 e Salgado e
Bataglia eram unha com carne. O presidente do BES estava contente com o
crescimento dos negócios do grupo em África e Bataglia era o principal
responsável por esse êxito. Tinha fundado a Escom, a que presidia (tinha
33%, o resto era do GES), no início dos anos 90, para se dedicar à
importação de bens alimentares e medicamentos, a projetos imobiliários,
de exploração de petróleo ou de prospeção de diamantes em Angola e no
Congo-Brazzaville.
Antes da Operação Marquês e antes do Monte
Branco, Bataglia já tinha sido investigado noutro processo, precisamente
por causa da Escom: o dos submarinos. A empresa tinha intermediado o
negócio pelo lado dos alemães e recebido em troca uma comissão de cerca
de 27 milhões de euros, que despertou a atenção do Ministério Público. O
inquérito foi aberto mas quando os investigadores finalmente
desvendaram o esquema total de fuga ao fisco e de lavagem de dinheiro –
que teria passado pelos administradores da empresa e pelos cinco ramos
da família Espírito Santo – já era tarde: estava tudo prescrito.
Somadas
a todas estas ligações, Bataglia ainda tinha de ter uma relação
familiar com José Sócrates. O empresário teve uma filha de uma relação
com Filomena Pinto de Sousa, prima de Sócrates que chegou a partilhar
casa com o ex-primeiro-ministro em Paris. E para lá de tudo isto, ainda
dizia ser amigo e parceiro de negócios de José Paulo (conhecido como
“Paulo, o Gordo”), outro primo de Sócrates que também aparece no
circuito do dinheiro da Operação Marquês.
Incrimina Salgado e fica livre
Há muito
tempo que o Ministério Público tinha descoberto que Hélder Bataglia era
beneficiário de pelo menos 14 sociedades offshore (os Panama Papers,
revelados pela TVI e pelo
Expresso, descobriram 23) e tinha colocado 20
telemóveis seus sob escuta. Precisava de saber o que justificava as
transferências para Joaquim Barroca. E deste para Santos Silva.
Por
essa razão, durante meses, o advogado de Bataglia, Rui Patrício, e o
procurador Rosário Teixeira mantiveram um longo braço de ferro: o
procurador queria ouvir o empresário; Bataglia dizia-se disponível para
esclarecer as dúvidas mas numa condição
– não ser privado da liberdade
depois do interrogatório. Rosário Teixeira começou por recusar, tendo
emitido mesmo um mandado de captura internacional que impediria Bataglia
de se afastar de Angola (a investigação suspeita que terá conseguido,
ainda assim, viajar para o Dubai). Mas perante a urgência de ter de
deduzir uma acusação no espaço de dois meses, e sabendo que Bataglia
precisava de viajar, o magistrado acabaria por ceder.
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Bataglia
foi ouvido no DCIAP a 5 de janeiro deste ano. Foi o único intermediário
do dinheiro da Operação Marquês a sair com um simples termo de
identidade e residência (TIR) e a não precisar de se apresentar ao juiz
Carlos Alexandre. O Ministério Público precisava que colaborasse e a
colaboração deu-lhe um passe para a liberdade. Já não precisava de ficar
encurralado em Angola. O que mais pode desejar um milionário habituado a
ir aos melhores hotéis e restaurantes, com negócios e património
espalhados pelo mundo, nas vésperas de completar 70 anos?
Nessa
data, Bataglia entregou Salgado e Carlos Santos Silva. Em Lisboa, o
fundador da Escom contou aos investigadores que, num certo dia, o
ex-presidente do BES lhe pediu para usar uma conta sua para transferir
12 milhões de euros para o empresário amigo de José Sócrates. Como
revelou o Expresso, Bataglia terá chegado mesmo a detalhar seis
encontros com Santos Silva no escritório da Escom nas Amoreiras, para
combinarem como fariam tudo isto deixando um rasto mínimo. Apesar deste
trabalho, Hélder Bataglia terá dito ao Ministério Público que nunca
perguntou a Salgado por que razão iria dar 12 milhões a Santos Silva.
Terá apenas aproveitado a ocasião para pedir mais 3 milhões para si,
alegadamente por ter conseguido a licença para o BES
Angola, muitos anos antes
A versão
comprometia Salgado e Santos Silva mas não necessariamente José
Sócrates. Ao dizer que não sabia porque o banqueiro queria dar dinheiro
ao então administrador do grupo Lena, Bataglia acabava por não deitar
abaixo a tese defendida por Sócrates e pelo amigo: que o dinheiro era de
Santos Silva e que aquele apenas emprestava dinheiro ao antigo
primeiro-ministro.
Só que a história contada no interrogatório é
muito maior e mais complexa. De acordo com informações recolhidas pela
VISÃO, no espaço de três anos, entre 2006 e 2009, Hélder Bataglia
recebeu nas suas contas suíças 29 milhões de euros com origem no BESA e
na Espírito Santo Enterprises. Ou seja, mais 14 milhões além dos 15 que
confessou ter recebido para fazer um suposto favor a Ricardo Salgado.
Na
verdade, os 15 milhões de euros chegaram às suas contas em 2008 e 2009,
em duas tranches do mesmo montante. Antes, em 2006, já tinha recebido 7
milhões com origem no BESA e, em 2007, outros 7 milhões via ES
Enterprises. Estes 14 milhões, se não eram para Santos Silva, eram para
quê?, perguntou Rosário Teixeira. Bataglia disse que também eram
prémios: um “success fee” pelo êxito do BESA e mais uma compensação pela
obtenção da licença bancária para aquele banco (anterior à dos 3
milhões).
Durante o interrogatório, Bataglia ainda explicou que
um dos prémios teria vindo via Escom: a empresa do GES, alegadamente com
o consentimento de Ricardo Salgado, teria pedido um financiamento ao
BESA, para que Bataglia fosse remunerado. Na altura, o empresário não só
presidia à Escom como era administrador do banco angolano. Em 2010,
depois de ter chegado ao suposto acordo para ser intermediário do
dinheiro entre o GES e Santos Silva, e após ter recebido nas suas contas
os 15 milhões de euros, Bataglia terá ainda feito duas transferências:
uma de 2,75 milhões e outra de 3 ou 4 milhões de euros. A primeira
serviria para, alegadamente, pagar um empréstimo dado por Ricardo
Salgado nove anos antes (em 2001) e a segunda para “acertar contas” com
Álvaro Sobrinho.
Cerca de duas semanas depois, a 18 de janeiro,
era chamado Ricardo Salgado a prestar declarações no edifício do DCIAP,
na Gomes Freire, em Lisboa. O que teria o ex-presidente do BES a dizer
sobre tudo isto? Ao que a VISÃO apurou, o antigo banqueiro não vacilou
um segundo. Terá assumido que foram feitos vários pagamentos a Bataglia,
através de entidades do Grupo Espírito Santo, para o compensar pelos
negócios que trazia ao grupo. Mas terá garantido que nunca lhe pediu
favores nem transferências e que a partir daí não faz ideia do rumo que o
milionário deu ao dinheiro.
À saída, um dos seus advogados,
Francisco Proença de Carvalho, disse que as razões para a mudança de
testemunho de Bataglia nesta fase do processo “deveriam ser seriamente
investigadas”. A versão do luso-angolano deu-lhe a liberdade e deixou-o
mais perto de se livrar de uma acusação por corrupção, o crime mais
grave dos que estão em investigação. Em abril, o seu discurso era outro.
Nove meses em que tudo muda
Antes de
entregar Salgado neste depoimento, Bataglia já tinha sido constituído
arguido em Luanda e respondido a 40 perguntas do Ministério Público
português, em abril de 2016. Nessa altura, contou que teria emprestado
cerca de 7 milhões de euros a José Paulo, entre 2005 e 2007. Desse
total, 5,5 milhões de euros acabaram nas contas de Santos Silva. Contou
também que o primo de Sócrates teria compensado parte desse empréstimo
dando-lhe uma parceria num negócio de exploração de umas salinas em
Benguela. Salinas que não chegaram a ser exploradas por suposta falta de
financiamento. Ainda assim, apesar de esse negócio ter rendido zero,
como o terreno era da família Pinto de Sousa, justificou Bataglia, a
dívida estaria praticamente saldada.
Sobre tudo o resto, ao que a
VISÃO averiguou, o empresário não apresentou explicações. Negou ter
conhecimento de transferências para Santos Silva ou Barroca, negou que
as suas contas na Suíça servissem como contas de passagem; disse que não
acordou com ninguém a ocultação da proveniência de fundos, que nunca
quis dar dinheiro a José Sócrates, que nada combinou com Santos Silva ou
com o patrão do grupo Lena. Confirmou apenas ter recebido ao longo da
vida transferências do GES – no qual incluía a ES Enterprises – devido a
negócios e investimentos que conseguira para o grupo. E acrescentou que
as suas contas eram alimentadas por fundos com várias origens, devido
aos seus inúmeros negócios pelo mundo e por ser um “empresário e
investidor ativo”.
Nenhuma destas respostas surpreendeu o
Ministério Público. Continuava a faltar o fundamental: o corruptor e o
motivo. Teria sido o Grupo Lena como contrapartida por Sócrates
interceder pelo grupo empresarial de Leiria junto de altos
representantes de outros países? Teria sido pela aprovação do
financiamento da Caixa Geral de Depósitos a Vale do Lobo, o resort
algarvio de que Bataglia era acionista?
Em outubro de 2015, pela
primeira vez, a dupla Paulo Silva e Rosário Teixeira iria explorar outra
tese, que foi avançada pela VISÃO em primeira mão. E se o caso que tem
como principal arguido José Sócrates estivesse intimamente ligado a
Ricardo Salgado? E se o ex-primeiro-ministro tivesse recebido dinheiro
do misterioso saco azul do GES?
Pelo sim pelo não, a equipa pediu
ao Parlamento toda a informação recolhida sobre a ES Enterprises no
âmbito da comissão de inquérito à queda do BES e do GES. Não demoraria
até que no processo descobrisse a coincidência entre as datas das
operações bancárias sob suspeita e as datas decisivas que rodearam os
negócios da PT, da Vivo e da Oi – que incluem o chumbo da OPA lançada
pela Soneacom, o trunfo da goldenshare usado por Sócrates para valorizar
o negócio da venda da Vivo em 350 milhões de euros e a fusão com a
operadora brasileira Oi, que tanto agradava a Sócrates e a Lula da
Silva.
A ligação à PT
Curiosamente, foi Bataglia
quem abriu caminho para que se chegasse à PT, quando revelou, em 2015,
na Comissão Parlamentar de Inquérito, ter assinado um contrato com a ES
Enterprises de 7,5 milhões de euros. Dinheiro que serviria para
remunerá-lo pela prospeção de novos negócios em Angola e no Congo, em
setores como o imobiliário ou a exploração petrolífera. No
interrogatório de janeiro no DCIAP, Bataglia acrescentou outra função ao
tal contrato: visaria compensá-lo pela sua intervenção nas negociações
destinadas ao pagamento da dívida de Angola, em 2004. Na verdade, Angola
pagaria apenas 35% da sua dívida comercial a Portugal, recorrendo a um
empréstimo de 800 milhões de dólares de um sindicato bancário liderado
pelo BES.
Até àquele momento no Parlamento sabia-se apenas que o
Ministério Público desconfiava da existência de uma sociedade no GES que
teria servido para pagamentos “não documentados”. Falava-se de um
suposto saco azul para pagar a colaboradores e também a políticos. Mas
não se sabia a quem. Até ao dia em que o antigo braço-direito de Salgado
em África fez aquela revelação e se começou a investigar em detalhe as
transações daquela entidade misteriosa com sede nas Ilhas Virgens
Britânicas, a ES Enterprises.
E atrás de um nome viria outro. Primeiro
Bataglia, depois Zeinal Bava, depois outros administradores da PT.
Estaria afinal tudo ligado? Os milhões que se suspeitam ser de Sócrates,
as ordens de transferência de Ricardo Salgado, o saco azul, iria tudo
isto desaguar nos negócios que levaram à destruição da operadora? A dois
meses de deduzir a acusação, o Ministério Público acredita que sim,
estava tudo ligado. Bataglia não confirmou se o caminho está certo ou
errado, mas conseguiu o que queria.
* O camaleão e o seu poder de mimetismo.
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