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Isabel do Arco
Tropas retiradas, arras prometidas, todos em concórdia na paz dos nubentes
João
Rodrigues de Noronha, capitão de Ormuz, morreu naquele estreito em data
incerta da primeira metade do século XVI. Nessa data incerta, Isabel do
Arco enviuvou.
João Rodrigues de Noronha era rico. Filho de
Simão Gonçalves da Câmara, 3.º capitão do Funchal, e bisneto de
Gonçalves Zarco, recebeu do pai, pelo casamento, os fornos da Capitania e
uma tença, tudo no valor de 160.000 reis anuais.
D. Isabel era
rica. Filha de fidalgos continentais, primeiros povoadores do Arco da
Calheta, levou para o matrimónio um dote de mil cruzados. Se rica era,
mais rica ficou com a morte do marido, que, além da fazenda madeirense,
legara o largo proveito – pecuniário – da sua expedição oriental.
Segundo
relatos históricos, foi esta concentração de capital que despertou, num
outro fidalgo da altura, a resolução de casar com Isabel. António
Gonçalves da Câmara era bisneto de Gonçalves Zarco, proprietário de
parte respeitável da capitania, e primo do falecido.
Tomado por
um qualquer apetite, António surpreendeu Isabel na sua casa a desoras, e
pediu-a em casamento escoltado por homens armados. Não sem um módico de
razão, Isabel insurgiu-se contra aquele cortejo, que lhe negava o
romance e tolhia a formação da vontade. Indignada, instou a que António
voltasse no dia seguinte.
No dia seguinte, Isabel rodeou-se das suas gentes. E António e seu séquito não conseguiram entrar.
Cavaleiro
que era, e afrontado e acicatado que estava, António aguardou que o
alvo se pusesse em movimento. E num dia em que Isabel montava diante de
sua casa, António interceptou o cavalo, reconduzindo-a violentamente aos
seus aposentos.
Do caso foi dado conhecimento ao Ouvidor do
Funchal, que regia na ausência do capitão. Para resgate de Isabel, o
Ouvidor formou um pequeno exército, que se aparelhou diante da fazenda
de António. Nada que demovesse os seus fiéis, que ali armados se
amontoavam.
Prevendo uma carnificina entre parentes, amigos e
aliados, António e Isabel chegaram a acordo, e – no primeiro gesto de
bom-senso nesta história – anunciaram as suas núpcias. Para aquietar a
tensão, os noivos convidaram as facções em disputa para um banquete.
Tratava-se, na verdade, de novo e engenhoso expediente da noiva, que
escondida fugiu, no fim da festa, entre os homens do ouvidor.
O
Funchal e as suas guarnições estavam distantes. E Isabel refugiou-se,
provisoriamente, na lombada da Ponta de sol, em casa de Águeda de Abreu,
sua irmã e mulher do morgado João Esmeraldo.
António compareceu à
chamada. E apresentou-se com uma venerável expedição de combate, para a
qual recrutara vagabundos, foragidos da justiça, e falcões artilheiros.
Atalhando a uma batalha campal entre criminosos, gente de bem e dois
falcões, o casal celebra novo pacto: Isabel casaria mesmo com António.
Tropas retiradas, arras prometidas, todos em concórdia na paz dos nubentes.
Todos,
menos Águeda de Abreu. Em nome da honra da irmã – e, talvez, em secreto
protesto quanto a se encontrar mais vezes na mira dos falcões do que na
de fidalgos – Águeda queixou-se a D. João III, Rei de Portugal.
Ultrajado – como o Estado ainda hoje – pela justiça privativa, pelo
compromisso arbitral, e pela prova de a sua intervenção ser dispensável,
o monarca despachou o Desembargador Gaspar Vaz para se ocupar do caso. O
bom Desembargador não tardou a especializar-se em função da matéria,
condenando vários envolvidos à morte e ao desterro.
Antes da sua
certa condenação, António Gonçalves da Câmara escapuliu-se para
Canárias, e depois para África, onde se distinguiu por extravagantes
feitos militares ao serviço da Coroa. Por esses actos de valor – e por
sua mãe ser camareira-mor da Rainha – António regressou por indulto à
sua ilha de origem, onde Isabel o aguardava no Convento de Santa Clara.
Casaram finalmente, vários anos depois do primeiro assalto de António.
A História deixa, claro, muito por explicar.
António.
Se o seu motivo é capitalista, por que razão prefere as honras de
Isabel no Arco aos espólios da guerra em África? E, se o seu motivo é
tão torpe e a sua pretensão tão estouvada, por que razão reúne e afeiçoa
tantos correligionários?
E Isabel? Que sente quando António a
arrebata do cavalo? Será uma patrícia melancólica, entrevada e reprimida
pelo dever? Ou uma amazona dramática e bela, que se regala,
ludicamente, com as suas fugas, a guerra e o desafio à Família, a Coroa e
a Deus?
António balança entre facínora depravado e herói romântico. Isabel, entre vítima pusilânime e aristocrata de vanguarda.
António
pode só ser um bruto, e Isabel uma mártir – renitente – da sua
opressão. Mas António tem, talvez, uma força que o levou a voltar das
guerras onde o primo foi morrer. E Isabel tem, talvez, a graça e o
desplante de aguardar, num convento, por um criminoso de quem sempre se
soube evadir.
Não se sabe. Tudo depende do incomunicado e do incomunicável: tudo depende do que sentiam um pelo outro.
Esse
sentimento, que os condena ou redime, não vem nos livros. Alguém que o
descubra, ou invente. E escreva uma série para a HBO. Com os falcões, se
faz favor.
* Advogado
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
15/01/17
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