HOJE NO
"OBSERVADOR"
Da Medicina e da Igreja.
Recordando Daniel Serrão
Um homem dividido entre a medicina e a religião: a grande mágoa foi o saneamento da Faculdade de Medicina em 75; a maior alegria ser escolhido por João Paulo II para a Academia Pontifícia para a Vida.
Daniel Serrão teve uma vida enformada pela medicina e pela religião.
Como o médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe, como disse
Abel Salazar (outro médico portuense), o professor de Anatomia
Patológica foi muito mais do que médico – foi um pedagogo, foi um
eticista, foi um homem comprometido com o catolicismo mas sempre com
horizontes largos, foi um homem simples e próximo das pessoas. Para ele,
“só o otimismo pode ser desmesurado”, como sublinhava na página que
deixou na internet, danielserrão.com, uma forma, como ele dizia, de os netos e os tetranetos poderem vê-lo e ouvi-lo se e quando quiserem.
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Morreu
num domingo de epifania, na festa católica dos Reis aos 88 anos, a
menos de dois meses de completar 89. Em Outubro de 2014 tinha sido
atropelado perto de casa, porque todos os dias fazia exercício – “ando
pelo menos uma hora por dia”, dizia-me, quando nos encontrávamos. O que
aconteceu muitas vezes porque morávamos bem perto. Nunca recuperou desse
acidente.
Um homem alto, a sua presença começava por se notar
fisicamente, mas rapidamente se alargava. Grande conversador, gostava de
explanar as suas ideias e de procurar os melhores argumentos.
Recordo-me que defendia a certa altura o cardeal francês Jean-Marie
Lustiger para Papa, por ser um judeu converso e isso, segundo ele,
permitiria à Igreja Católica abrir novos horizontes e resolver os
problemas com o judaísmo.
Nascido em Vila Real, filho do meio de
um engenheiro da então Junta Autónoma das Estradas e de uma dona de
casa, concluiu o liceu em Aveiro, mas estabeleceu-se no Porto, onde
viveu até ao final da vida e se dedicou à Faculdade de Medicina – de
resto morou sempre perto do Hospital de S. João onde ela funciona
(durante um tempo, Jorge Nuno Pinto da Costa morava no prédio em frente,
bem antes de ser presidente do FC Porto).
Doutorou-se com 19 valores,
concorreu para professor de Anatomia Patológica, um cadeirão. Mobilizado
para Angola, lá esteve entre 1967 e 1968. Já tinha os seis filhos e era
impossível, com o vencimento de militar, prover às necessidades de uma
família numerosa. A mulher, Maria do Rosário, professora de ginástica,
queria acompanhá-lo e levaram assim apenas um dos filhos “por decisão
dela”, escreveu, deixando os outros “à caridade dos padrinhos”. Quem os
acompanhou foi Daniel Luís, que viria a morrer cedo, em 1994.
A
grande mágoa foi o que chamou em livro “Um saneamento exemplar”, quando
foi afastado, em 1975, da sua querida faculdade por acharem que não
estava de acordo com os ideais da revolução.
Foi reintegrado ao fim de
um ano, por decisão do Conselho da Revolução com reposição integral de
salários (“foi a única vez em que ganhei sem trabalhar”). Tinha que
sustentar a família e montou em casa um laboratório de Anatomia
Patológica e aparentemente ganhou bom dinheiro. Até porque os colegas
começaram a recomendar a competência do professor e mesmo alguns que o
tinham ajudado a sanear lhe mandavam doentes…
Estava sempre
disponível para ir falar a qualquer conjunto de pessoas, grande ou
pequeno, quase a qualquer hora do dia e da noite mesmo já depois de
dobrados os 80 anos. E tinha uma grande facilidade em falar, em
apresentar ideias – até há três anos tinha um espaço próprio de opinião
no Porto Canal, que terminou com o acidente de 2014. Tinha as ideias
claras, contava bem histórias, tocava nos pontos certos, não evitava os
mais polémicos.
Assentou a sua vida em valores considerados de
direita, mas sempre com uma grande sensibilidade social. Preocupava-se
com as grávidas muito jovens, com os abortos sequentes, não tinha
dúvidas em defender o preservativo em muitos casos, preferindo as razões
médicas e sociais à razão da igreja. De resto, confessou que em jovem
teve um curto período de “ateísmo militante”.
Daniel Serrão gostava de militar, gostava da luta, das suas trincheiras e dos argumentos.
“Eu
agora já não sou o prof. Serrão, passei a ser o pai do Manel”, disse-me
um dia, porque o filho lhe disputou, por via da televisão, a
popularidade. O “Expresso” chegou a fazer uma bela reportagem, “Serrão e
filho”, pegando num título de um programa humorístico da televisão. Mas
também o irmão mais novo, Fernando, igualmente professor universitário
(Química) foi subsecretário de Estado da Juventude e Desporto de
Salazar, entre 1964 e 68. Uma família de peso político, religioso,
social que ultrapassou momentos difíceis – esse irmão morreu com 52 anos
em 1981 (era o padrinho do filho Manuel), uma das quatro filhas partiu
ainda antes do pai.
Mas na verdade, Daniel dos Santos Pinto Serrão
teve sempre um enorme reconhecimento público, até porque se dedicou a
um campo novo, o da Bioética, numa altura em que se começaram a discutir
as diferentes formas e possibilidades da procriação. Foi distinguido
com lugares em Portugal e no estrangeiro – na Unesco e na Cúria, por
exemplo – mas ter sido escolhido pelo Papa João Paulo II para membro da
Academia Pontifícia para a Vida foi uma das grandes alegrias da sua
vida.
* Um cidadão cheio de dignidade, um exemplo de humanidade a seguir.
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