Larguem o colégio eleitoral
Combater um populista com democracia direta é só atirar gasolina para a fogueira
Donald Trump é o presidente-eleito dos Estados Unidos
da América. Este facto continua a deixar muita gente em negação,
esquecendo a solidez do sistema político norte-americano – que é o mesmo
desde o seu nascimento – e a legitimidade democrática do senhor Trump.
O estado de negação e a legitimidade democrática juntaram-se e deram
origem a uma série de protestos contra a eleição de Trump. Hillary
Clinton conseguiu mais 2.7 milhões votos populares que Trump, mas Trump
venceu no Colégio Eleitoral – um mecanismo que motiva os candidatos
presidenciais a fazer campanha em cada Estado norte-americano em vez de
se focarem somente nos mais populosos, como o exemplo da Califórnia ou
da Flórida.
Em 2000, aconteceu o mesmo a Al Gore, que celebremente teve mais meio
milhão de votos populares que George W. Bush, mas foi W. que conseguiu
vencer a votação no colégio eleitoral.
Com a extensa margem de 2.7 milhões de votos acima de Trump, várias
vozes se levantaram contra a eleição do magnata. Jill Stein, uma
independente, angariou mais de seis milhões de dólares para financiar
uma recontagem dos votos. Bernie Sanders, Al Gore (naturalmente) e uma
série de dirigentes do Partido Democrata pronunciaram-se pelo fim do
Colégio Eleitoral.
É preciso alguma arrogância para vir pôr em causa um sistema político
com mais de duzentos anos porque não se gosta de quem ganhou. Eu não
gosto, mas defendo que não se deve mexer no sistema. Porquê? Os Estados
Unidos da América são a primeira república constitucional do planeta, a
única democracia imune, até hoje, a qualquer revolução desde a sua
fundação. A sua estabilidade, historicamente colocada em causa com uma
Guerra Civil, vem sobrevivendo pelos limites que salvaguardam a
democracia: partidos, instituições e sociedade civil.
Se é verdade que Donald Trump não vem institucionalmente de um
partido, é verdade que (1) soube contactar com uma franja da sociedade
civil que Clinton não conseguiu e que se sente esquecida com a
globalização e que (2) as instituições que podem escrutinar a
presidência do senhor Trump continuam cá. O Senado, o Congresso e o
Supremo Tribunal.
Pensar que a solução para a imprevisibilidade e impreparação de Trump
– que não são, de todo, um problema a desconsiderar – será o
encerramento de instituições como o Colégio Eleitoral é um erro.
Combater um populista eliminando a barreira entre democracia
representativa e democracia direta não tem sentido. Seria, aliás, uma
ameaça à unidade norte-americana. Um país tão vasto e diverso não
poderia ser governado em democracia direta por essas mesmas razões.
A ideia pode agradar muito a Bernie Sanders, que (convém lembrar) tem
uma carreira política a bater no partido para o qual se candidatou em
2016, mas porque Sanders sabe que nunca passaria num colégio eleitoral.
O meu ponto não é defender Trump, que, como disse Tom Hanks, só nos
pode envergonhar, mas defender um sistema que garantiu estabilidade
durante séculos e que é, sobretudo, a melhor garantia de travar o
próprio Trump. Uma democracia direta, sem instituições, é o caminho para
uma presidência sem escrutínio. Agora imaginem que o senhor Trump
ganhava a sua reeleição num cenário desses.
O lado mais cómico é que Trump, como bom populista, também é contra o sistema que o elegeu.
Em 2012, quando Barack Obama foi reeleito contra Mitt Romney,
escreveu assim: “Ele perdeu o voto popular por muito, mas ganhou a
eleição. Devíamos ter uma revolução neste país!; “A foleirada do colégio
eleitoral fez desta nação uma anedota”; “Não podemos deixar que isto
aconteça, devíamos marchar contra a capital e parar este embuste. Este
país está dividido!”; “Vamos lutar como ao raio e parar esta enorme e
nojenta injustiça! O mundo está a rir-se de nós”; Esta eleição é um
esquema e uma vergonha. Não somos uma democracia!”.
Era importante que os democratas de 2016 parassem de imitar o senhor
Trump de 2012 com tanto primor. A ver se a América continua uma
democracia e podemos todos parar de rir.
IN "i"
09/12/16
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