O profeta
Não, não é da telenovela brasileira que falo, ainda que muitos dos
desencontros que a sua trama comporta se devam ao mesmo dom certeiro que
nós tão arrebatada e diligentemente exaltamos – o da profecia,
justamente. Tão-pouco é da famosa obra de Khalil Gibran que desejo
ocupar~me, apesar de nela se encontrar o receituário eficaz para esta
impenitente maleita que nos obsidia – a de ver sempre as nuvens
ameaçadoras em vez do arco-íris. Permitam-me que aponte mais para baixo –
para o dedo do pé!
Permitam-me que seja mais prosaico,
limitando-me ao exercício raso da pura verificação: nós somos
doentiamente fixados no lobo mau! Acima de tudo, eis o que procuramos:
vermo-nos confirmados na popular arte de prever o pior. Sim, que é em
nós prioridade absoluta satisfazer essa compulsiva necessidade - a de
se ter razão! “Eu não te disse, meu filho? Eu bem que te avisei, eu
sabia que, mais dia menos dia, isto (acidente) ia acontecer” Ou seja, e
traduzindo o ínvio e secreto contentamento da mãe à cabeceira do filho ,
na enfermaria do hospital: “Estás a ver, meu filho, o amor que a mãe te
tem que; sempre preocupada contigo, previu ( e criou!) tudo isto para
ti?”
Veja-se como estamos viciados na triste sina de ver mal –
que mesmo quando desejamos o melhor, é sempre o pior que vemos: o nosso
olhar desvia-se invariavelmente para o contrário daquilo que queremos
ver. A isto se chama o vício percepcional da dissociação – desejamos uma
coisa mas empenhamo-nos no seu contrário. Vício em que todos somos
useiros e vezeiros – como os nossos treinadores, de futebol e demais
modalidades.
Em pomposa conferência de imprensa de lançamento
(termo interessante, este!) do jogo que se segue, eles são quase todos
unânimes e síntonos na arte coral de prever: exibem o tímido e
reverencial desejo de ganhar, mas o tempo todo é passado a identificar e
a exaltar as ameaçadoras qualidades do adversário, alertando para uma
certeza absoluta: “vai ser muito difícil”. O mecanismo profético
funciona assim: o conductor do carro, em íngreme subida, carrega, ao
mesmo tempo, no acelerador e no travão! Resultado? Pois é…. A isto
chamam os psicólogos a “profecia auto-concretizada”. E isto acontece
todas as semanas e em todas as jornadas internacionais. E. já agora,
acontece-nos o pior porque é na experiência do pior que mais calhados
estamos.
Mas o mais bizarro de tudo isto é que ser profeta da
desgraça é socialmente percepcionado como sinal de sagacidade
técnico-tática, de competência profissional. Tal facto se deve ao
seguinte: por vício cultural, estamos todos atolados no mesmo pecado
original – o de, fascinados, apenas considerarmos o mundo exterior,
desprezando a nossa realidade interior – como se tudo se resolvesse a
partir dos esquemas desenhados na prancheta por quem nunca, como eu, foi
capaz de desenhar um pobre vaso na escola.
Não, há toda uma
miríade de ingredientes, subtis e imprevisíveis; que concorrem para o
desfecho sincrónico de um determinado evento. E um desses elementos, o
mais importante, é o pensamento intencional que, por sua vez, veicula
uma emoção: cria-se acolhendo o já criado. (Gregg Braden). Se houver
treinadores, um que seja, que aceite receber esta mensagem já me
considero recompensado. Em troca, prometo: a sua vida vai melhorar!
Porque
é realmente comovente esse zelo beneditino em prever a desgraça – e,
depois, lamentam como é incerta a vida de treinador! Sim, porque a quem
não quer receber más notícias não basta trocar a caixa de correio- de
nada valerá se o conteúdo das mensagens continuar sendo o mesmo. Mais
assertivamente: recebe-se de volta a notícia que se envia! Quem quer
receber boas notícias só tem uma coisa a fazer: esperá-las sinceramente,
em vez de enviar maus presságios e ficar, à esquina, assobiando, na vã
esperança de que talvez se possa ter enganado. Não, nós criamos a nossa
própria realidade (Allan Wolf) – e uma das maneiras mais eficazes de
algo criar é ter medo: a implícita aceitação de que isso que se teme nos
pode mesmo derrubar.
Enfim, quem lança as sementes no mau solo
só pode esperar colher abrolhos e escalracho. Ganha quem se sente
vencedor - como o verdadeiro profeta!
Doutor em Filosofia pela Universidade Católica Portuguesa, professor
visitante na Universidade de Brasília e professor convidado na
Universidade Pedro de Valdívia, no Chile
IN "A BOLA"
25/10/16
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