Mukashi mukashi
Mukashi mukashi. É assim que em regra começam as histórias no
Japão. Esta não é uma história japonesa, nunca fui ao Japão, não gosto
de sushi, não me encanto com as cerejeiras em flor, nunca vesti um
kimono, gostava de despir um kimono ao caso a uma mulher, parece-me que
não é preciso tanta cerimónia para beber um chá, achei graça quando
soube que para os japoneses é educado ou polido, à mesa, fazer barulho
de sucção ao comer a sopa, não achei graça quando soube que são o maior
consumidor de carne de baleia do mundo, de resto gosto de saquê, de
kamikazes, em regra traduzido como "vento divino", kami significa "deus"
e kaze "vento", eu gosto de lhes chamar tipos com túbaros.
Mukashi mukashi: há muito tempo.
Há muito tempo que não sou feliz.
Há muito tempo que não me vejo a sorrir, ao espelho, numa fotografia, nos olhos de alguém.
Há muito tempo que não tenho vontade de correr para chegar a horas, antes da hora, a um lugar, a uma pessoa.
Há muito tempo que vivo atrasado e sofro as consequências dos
meus atrasos, levo raspanetes do meu chefe, dos colegas, dos meus pais,
da mulher, dos filhos.
Há dias o mais novo, quatro anos, mal sabe ainda conjugar verbo
e sujeito, recusou-se a brincar comigo, o jogo assim não presta, disse
naquela voz de falsete de todas as crianças, porque derivado do meu
atraso já não tínhamos tempo suficiente para terminar o jogo.
O jogo assim não presta, disse incomodado o petiz, enquanto eu ouvia, em stereo, um pai assim não presta.
No fundo o que todos dizem, a mim ou em cochichos nas minhas
costas, que sou um inconsequente, porém não estão certos, estão errados,
porque os meus atrasos não são inconsequentes, são cheios de
consequências, consequências nada benignas, consequências que me atrasam
ainda mais as horas dos dias, a vida.
Porque eu não corro, tudo me corre mal.
No trabalho sou afastado dos novos projectos. Desafios. O
director agora diz desafios, e é suposto repetir em coro o refrão da
chefia. Desafios que na realidade não têm nada de novo. Trabalho na área
administrativa de um aviário, controlo compras e vendas. Todos os dias,
com os milhares de ovos que as galinhas põem, faço mesopotâmicas contas
num moderno ábaco. Claro que já temos computador, mas confesso que
ainda prefiro usar máquina de calcular, o que me subtrai dinamismo,
outra palavra querida do meu chefe, no fundo, ou inconscientemente,
talvez goste de palavras que começam por "D" e eu gostava de o mandar
enfiar um dedo num dedal e, em vez de cortar e coser, que aprendesse a
bordar, era bonito e é uma arte que se está a perder.
Ando sempre com uma máquina de calcular no bolso do casaco, o
que é visto e somado como mais um dos meus atrasos, apesar de nunca me
ter enganado numa conta, nunca ter tido de rectificar uma factura.
Em casa, porque sei que frequenta a casa, a minha mulher tem um
amante, o mesmo amante há oito anos, o que me leva a questionar-me
porque é que ainda não me deixou, talvez os filhos, os nossos, ou os
dele, que também tem dois rapazes.
E percebendo tudo isto eu devia mudar mas não mudo nada, não mexo uma palha, sou uma montanha sem Maomé, sou um bicho sem fé.
Ou mudo, mudei uma coisa, comecei a ler poesia, que, dizem, a
vida precisa de poesia, e só uma pessoa percebeu a mudança, o meu pai,
que não me disse nada, que ouvi depois comentar com o meu irmão mais
velho, agora é que não se pode contar com ele para nada.
E ontem li um poema de um poeta japonês do século XVII, Matsuo Bashô, em que dizia mesmo em Kyoto tinha saudades de Kyoto,
o que, como se eu fosse também japonês, como se tivesse crescido,
envelhecido, a comer sopa de miso, me deixou a pensar, que sendo quem
sou, que estando onde estou, tanto gerúndio mais pareço nativo de um país tropical, abençoado por deus e bonito por natureza, mas o facto é que não tenho saudades de mim.
Não tenho saudades nem sonhos, não tenho passado, não tenho futuro.
Tenho presente.
O presente é inevitável. Respiro, leio muito, o que para mim é
como respirar, às vezes brinco com o meu filho, o mais novo, que o mais
velho já não me liga, faço amor, não lhe devia chamar amor, almoço aos
domingos ora em casa dos meus pais ora em casa dos meus sogros, passeio o
cão, corto a relva, levo o carro à revisão, não falto ao trabalho, não
me engano nas contas, porém chego sempre atrasado a esta vida que não
escolhi, na qual não sei como me meti, mas aos presentes não é suposto
fazer cara feia.
* Escritora
IN "SÁBADO"
26/09/16
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