23/06/2016

RICARDO ARAÚJO PEREIRA

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Jogar às cartas com a vida

Entre queimar bruxas, como antigamente, e dar-lhes programas na televisão, como agora, talvez haja um meio-termo sensato para uso de uma sociedade decente

O leitor não vai acreditar nesta: um daqueles programas televisivos em que uma bruxa residente dá consultas com um baralho de cartas recebeu um telefonema de uma espectadora que pretendia aconselhar-se acerca da situação de violência doméstica que vive há 40 anos. A bruxa baralhou as cartas, dispô-las em cima da mesa e recomendou à senhora que não discutisse com o marido e o mimasse. Incrível. Para grande surpresa de toda a gente, aquele método não se revelou eficaz na produção de bons conselhos. 

Em defesa do Tarot, devo dizer que a culpa não foi das cartas. A bruxa baralhou--as de forma exemplar e depois justificou sem margem para dúvidas o conselho: saiu a carta da Imperatriz e a da Temperança, o que indica claramente que o marido da espectadora não tem amantes e que, além disso, não convém discutir com ele. As redes sociais é que não se comoveram com a explicação e, abandonando a sua habitual calma, por uma vez indignaram-se. Foi então que o caso chegou aos jornais. Antigamente, os jornais relatavam o que acontecia no mundo; hoje, relatam o que acontece nas redes sociais. É assim que agora vamos sabendo o que se passa: as redes sociais fazem uma primeira triagem, distinguindo os factos susceptíveis de proporcionar boas indignações dos que não irritam ninguém, e depois os jornais relatam com objectividade e isenção a gritaria que se gerou. 

Na minha qualidade de pessoa de antigamente, considero que condenar este conselho específico de um programa de bruxaria equivale a lamentar que uma pessoa cuspa para o chão quando se encontra numa pocilga. Como é que eu hei-de explicar o meu raciocínio extravagante? Digamos que eu não me surpreendo quando um baralho de cartas dá maus conselhos. Assim como também não espero que búzios, borras de café e entranhas de galinha produzam pensamento moderno e sensato. 

Na minha bizarra opinião, todos os conselhos provenientes do lançamento de cartões rectangulares com bonecos desenhados são inadmissíveis. Os espectadores daquele programa pedem opiniões sobre a sua saúde, a vida profissional e a vida sentimental. Estou firmemente convencido de que nem a bruxa nem os bonecos têm competência para se pronunciar sobre qualquer desses assuntos. “Devo mudar de emprego?” Resposta certa: “Não sei.” “O meu marido tem uma amante?” Resposta certa: “Não sei.” “Este caroço que me apareceu debaixo do braço é grave?” Resposta certa: “Não sei.” E assim sucessivamente. Ora, entre queimar bruxas, como antigamente, e dar-lhes programas na televisão, como agora, talvez haja um meio-termo sensato para uso de uma sociedade decente. Pode ser que os jornais se lembrem de debater a questão. Mas só quando as redes sociais acharem que é a altura certa.


IN "VISÃO"
16/06/16

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