HOJE NO
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
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A violação como arma de guerra:
os filhos do Estado Islâmico
Os
combatentes do Estado Islâmico são conhecidos por manterem escravas
sexuais. Embora, por norma, obriguem as mulheres a usar contracetivos,
há muitas que, mesmo assim, ficam grávidas. As que conseguem fugir ficam
com profundas cicatrizes emocionais. O DN publica hoje a 1.ª parte de
uma reportagem da revista alemã Der Spiegel
À
noite, quando Khaula se deita e finalmente adormece, são muitas as
vezes em que sonha com a sua filha. As imagens que lhe aparecem são
sempre as mesmas: ela vê as suas mãos juntas sobre o peito, formando uma
concavidade. Quando levanta a mão que está por cima vê que tem um
pássaro por baixo. Vê o corpo e as penas do passarinho, mas este não
olha para ela e da sua garganta não sai qualquer canto. A pequena cabeça
do animal não existe.
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ENTERRADA VIVA |
Isto passou-se há 12 meses.
Khaula está agora a viver na Alemanha, sem a filha. Está sentada na sala
do fundo de um café no estado alemão de Bade-Vurtemberga, onde veio
para contar a sua história. Ela é uma mulher tranquila de 23 anos, tem o
cabelo negro ondulado e gosta de vestir roupas curdas.
Khaula
partilha um dormitório com outras mulheres que foram libertadas. O
local deve ser mantido em segredo e Khaula não é o seu verdadeiro nome.
Como na Alemanha também existem simpatizantes do EI, as mulheres não
estão livres de perigo aqui.
Viver com um trauma profundo
O
estado de Bade-Vurtemberga acolheu cerca de mil mulheres e crianças do
Iraque para as ajudar a aprender a viver com o que lhes tinha
acontecido. Jan Ilhan Kizilhan, psicólogo e especialista em trauma da
Universidade Cooperativa do Estado de Bade-Vurtemberga em
Villingen-Schwenningen, selecionou as mais necessitadas de ajuda no
Iraque, para onde viajou uma dúzia de vezes. Anteriormente trabalhou com
vítimas de violação no Ruanda e na Bósnia.
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"Apenas
as mulheres mais seriamente traumatizadas tiveram permissão de vir para
a Alemanha", diz Kizilhan. Esse grupo inclui mulheres como uma yazidi
cujo bebé foi fechado numa caixa de metal por um combatente do EI e
deixado à torreira do sol à frente dela até morrer. Outra criança foi
espancada até à morte por um homem do EI que lhe partiu a espinha.
Em
agosto de 2014, o Estado Islâmico invadiu a região de Sinjar no Norte
do Iraque, assassinando e raptando milhares de mulheres e raparigas que
vieram a tornar-se escravas sexuais dos seus combatentes. Centenas de
mulheres que conseguiram escapar aos seus carrascos regressaram
grávidas. Os filhos dos combatentes do EI podem ser encontrados hoje na
Síria, no Iraque, na Alemanha e, possivelmente, até na Turquia, no
Líbano e noutros países onde os refugiados procuraram abrigo seguro.
Pensa-se que o número seja da ordem das centenas. Só na região
controlada pelos curdos no Iraque, os médicos calculam que esse número
se situe entre as 40 e as 100 crianças. Dado o grande número de mulheres
que foram sequestradas na região, o cálculo parece ter sido feito por
baixo.
A violação como arma de guerra
O
uso da violação como arma de guerra é um conceito tão antigo como a
própria guerra, mas a organização do crime dentro do EI é
particularmente pérfido. O Estado Islâmico obriga muitas das mulheres
yazidi que rapta a usar contracetivos de forma a garantir que o comércio
das mulheres - que são frequentemente vendidas cinco, seis ou sete
vezes a diferentes combatentes - não é perturbado pela gravidez.
As
que foram libertadas, assim como médicos e psicólogos entrevistados,
confirmaram que foram fornecidos contracetivos às mulheres yazidi
tornadas cativas. Algumas tomaram as pílulas, mas outras cuspiram-nas às
escondidas. Uma mulher relatou mesmo ter sofrido violação anal, porque
os combatentes queriam evitar assim uma possível gravidez.
A
maioria dos filhos do Daesh, o nome do Estado Islâmico em árabe, não
tem mais de ano e meio. Eles são a prova viva da humilhação infligida e
representam o ainda maior enfraquecimento dos alicerces da sociedade
curda.
Encontrar os filhos do Estado
Islâmico não é fácil, até porque a sua sobrevivência é um tabu. Eles
levantam também algumas questões sobre o tema da escravatura sexual na
região. Por exemplo, como é que os iraquianos do Norte estão a lidar com
essas crianças. Que questões enfrentam as mães dessas crianças quando
fogem ou são libertadas? E o que faz o EI quando descobre que uma
escrava está grávida?
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A procura das
respostas a estas perguntas leva-nos não só a Bade-Vurtemberga, mas
também a um médico no Curdistão iraquiano. Leva-nos até um juiz
especializado na legislação da adoção em Dohuk e à periferia desta
cidade, onde descobrimos a bebé Nura deitada num berço.
A
história daí resultante não é de bons ou maus, de preto ou branco. É a
história de uma sociedade derrotada que, embora profundamente abalada,
tenta também manter a sua dignidade. É uma história de confrontação e,
ao mesmo tempo, de uma resiliência espantosa, surpreendente até.
Está
um dia lindo e quente em Bade-Vurtemberga. Dentro do café, Khaula pede
uma bebida de maçã e um panado com feijão que não comerá. Usa saltos
altos e um vestido preto, é uma mulher pequena, refinada. Khaula demora
várias horas a contar a sua história. Ela não chora enquanto a conta;
quase parece que está a relatar o destino de outra pessoa. "Estou a
contar a minha história para que a minha família capturada no Iraque não
seja esquecida", diz.
O mercado de escravas
A
3 de agosto de 2014, o EI atacou a aldeia de Khaula e no período de um
mês tinham desaparecido 5000 pessoas da região. Khaula foi obrigada a
entrar num autocarro e levada para uma prisão cheia de centenas de
outras mulheres e raparigas. Elas foram então obrigadas a beber a água
na qual os esbirros do EI tinham cuspido mesmo à frente delas. Enquanto
bebiam foram feitos os preparativos para a sua venda. Khaula caiu nas
mãos de um homem do EI, alto, de 45 anos, que usava uma túnica branca e
que disse chamar-se Abu Omar. Ele comprou-a por 1,5 milhões de dinares
iraquianos, cerca de 1500 dólares, e disse-lhe: "Tu pertences-me."
Depois fechou-a numa casa em Mossul, o reduto do Estado Islâmico no
Iraque.
Foi aí que ele a desflorou
brutalmente, pressionando-a contra o chão, puxando-a pelo cabelo para a
cama, asfixiando-a, amaldiçoando-a e obrigando-a a ouvir os gritos das
outras mulheres que estavam a ser torturadas na mesma casa. Passados
quatro meses, ele levou-a para casa da sua mulher, que estava grávida.
Khaula recebeu ordens para começar imediatamente a ajudar a mulher nas
tarefas domésticas, a tratar da roupa e na cozinha. Num ataque de
ciúmes, a mulher atirou-lhe uma cadeira. Khaula tentou então enforcar-se
numa ventoinha.
"Quero que me dês um filho"
O
homem tinha cinco filhas da primeira mulher. Ele disse a Khaula: "Quero
que me dês um filho." Durante as várias horas que ela demora a contar a
sua história, a determinado momento Khaula diz sobre a filha: "A vida
dela não significa nada para mim." Mas também diz: "A criança era muito
bonita." Oficialmente o EI não quer que as escravas sexuais como Khaula
engravidem.
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O Estado Islâmico publicou
um panfleto sobre como tratar as escravas com o título "Perguntas e
respostas sobre como manter cativas e escravas", que começou a circular
na internet depois do ataque a Sinjar em 2014. Ele estabelece que o sexo
com as escravas é permitido. A única menção a gravidez no panfleto está
relacionada com o valor de mercado da mulher.
O panfleto lança a seguinte questão: "Se a mulher prisioneira ficar grávida do seu dono, poderá este vendê-la?"
A resposta: "Ele não a poderá vender se ela se tornar mãe de um filho seu."
Por
outras palavras, o valor da mulher cai para zero no momento em que
engravida. Mas o seu estatuto melhora: como mãe, ela fica numa posição
algures entre a de escrava e a de mulher livre. Já não encaixa no
conceito de comércio de escravas ou bazar de virgens que o EI perpetua
com o objetivo de recrutar novos combatentes. Há regras que vêm do tempo
do profeta Maomé que também são mencionadas no panfleto: quando um
homem compra uma escrava sexual, ele tem de se abster durante um certo
período de tempo antes de ter relações sexuais com ela - um ou dois
ciclos menstruais. Essa abstinência é conhecida na lei islâmica como
istibra e tem por fim assegurar que a barriga da escrava está "vazia",
para que nenhuma criança concebida por outro homem seja imposta ao novo
dono.
Quando Khaula percebeu que estava
grávida, foi à sala do combatente, pegou numa televisão e carregou-a
para cima e para baixo nas escadas durante horas. Outras mulheres
empilhavam pedras em cima delas próprias ou saltavam de edifícios altos
para forçar um aborto. "Eu tentei tudo, mas não perdi a criança", diz
Khaula.
A mulher do combatente em breve
ficou com ciúmes, um golpe de sorte para Khaula. "Não quero ver mais a
tua barriga", disse ela numa manhã. Deu um telefone a Khaula, que esta
usou para marcar o número do irmão em Dohuk. O irmão deu-lhe o endereço
de um conhecido para onde deveria ir. Khaula deixou a casa envergando
uma burca e aceitou o dinheiro que a mulher lhe ofereceu para fugir. No
táxi, em vez de usar a palavra chukran (obrigada, em árabe), teve receio
e usou o termo do Daesh "Jazaak Allaahu Khayran".
O
conhecido do irmão estabeleceu contacto com uma rede yazidi a operar na
região do EI - intermediários que têm frequentemente conseguido tirar
as mulheres do cativeiro e passá-las para o território controlado pelos
curdos. A rede é dirigida por um homem com base em Dohuk que dá pelo
nome de Abu Shuya. Ele está constantemente a fazer malabarismos com três
telemóveis e recebeu múltiplas ameaças de morte do EI.
Khaula
esperou 40 dias. Abu Shuya mandou então um ajudante que a levou para
uma família árabe localizada perto da fronteira. Só avançavam de noite,
rastejando durante cerca de cinco horas pelas montanhas. O ajudante teve
de carregar com Khaula na tirada final até Peshmerga, pois só ele é que
sabia onde estavam localizadas as minas no terreno pedregoso.
"Finalmente estava livre", diz Khaula.
Pensa-se
que cerca de duas mil mulheres conseguiram escapar com sucesso das
zonas controladas pelo EI. As Nações Unidas calculam que ainda aí vivem
em escravatura perto de 3500 mulheres yazidi. Outras fontes mencionam
que o número pode atingir os 7000.
Escolhas difíceis
É
para Dohuk, uma cidade com meio milhão de habitantes localizada a 75
quilómetros de distância de Mossul, no Norte do Curdistão iraquiano, que
as sobreviventes do terror do EI vão em primeiro lugar. Está rodeada
por cidades de tendas e montanhas de cor ocre. É aqui que chegam as
mulheres grávidas e onde são feitos os abortos dos bebés do Estado
Islâmico. É também onde os bebés sobreviventes são dados para adoção.
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Khaula
encontrou-se com o irmão num campo em Dohuk. Nessa altura estava no
sexto mês de gravidez. "Eu estava tão feliz, nem sabia como o abraçar",
diz ela. Nessa noite vestiu várias camadas de roupa numa tentativa para
esconder a barriga, mas toda a gente continuava a olhar para ela. Uma
noite, o seu tio chamou-a de lado e disse-lhe: "Por favor, não queremos
bebés do Daesh."
Ela decidiu fazer um
aborto e encontrou um médico que lhe deu medicação para provocar o
parto. Passou dois dias num hotel e depois foi para o hospital como uma
doente normal. "O pai da criança está a combater na frente", disse-lhes.
Deu à luz uma menina com o cabelo escuro e a cara de um passarinho
bebé. Anteriormente, ela tinha imaginado o que seria ter um bebé, como
seriam as suas mãos minúsculas e o seu cheiro de recém-nascido.
Agora
a bebé estava deitada a seu lado, morta. "Os médicos não queriam que
ela morresse, mas houve problemas", diz ela. Khaula olhou para ela e
tocou-lhe ao de leve no pé com a ponta do dedo.
Depois
tapou a criança recém-nascida morta com um cobertor. O seu primo foi
buscá-la de carro e, juntos, puseram a menina num saco de plástico e
saíram da cidade para enterrar a bebé à beira de uma estrada. Khaula
ficou no carro. Conta que o seu único pensamento era: "Assassinei uma
criança."
A seguir ao enterro, o seu
tio matou um cordeiro como expiação. Depois, Khaula foi para a primavera
branca em Lalish, um local sagrado yazidi, para se limpar. Aí recebeu
uma bênção de Baba Sheikh, o líder espiritual yazidi, o qual, desde
2014, acolheu centenas de mulheres violadas de volta à comunidade.
* Esta barbárie foi na Idade Média ou existe em pleno século XXI?
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