HOJE NO
"OBSERVADOR"
"OBSERVADOR"
“O ‘call center’ deu-me cabo da vida”
O que fazem não é reconhecido como profissão. Mas o trabalho em "call
centers", apesar de precário, não é mais ocasional; há quem o faça há
décadas. Com que consequências na saúde? Muitas. E graves.
- Proibiam-nos de ir à casa de banho”
- Síndrome de burnout: “O tratamento começa na chefia”
- Mas quem são, afinal, os “donos disto tudo” nos call centers em Portugal?
- O que há a fazer por uma profissão que não o é? Tudo“
- Sim, sou precário. Mas prefiro sê-lo num call center do que na minha área. É menos humilhante”
Mal escuta a frase, o seu corpo
curva-se na cadeira. Uma cadeira ruça no assento, bamboleante nas rodas,
a ranger no encosto. Aproxima-se do ecrã. A visão de Alice já não é o
que era. Encaixa o headset no melhor dos ouvidos.
.
No começo
“era cada um melhor que o outro”, garante. Aproxima o microfone à boca —
nos ouvidos há escolha, nas cordas vocais não, está rouca. Cai uma
chamada, depois outra. Chegam a ser dezenas por hora. Ora se vende um
cartão de crédito – e quando não se vende, não há comissão ao fim do mês
–, ora se resolve em três tempos o problema de um cliente de
telecomunicações ou eletricidade. O supervisor, lá de longe, diz que há
mais chamadas em espera e é tempo daquela acabar.
Do outro lado da linha
ouve-se de tudo, desde agradecimentos mil a impropérios de fazer corar o
mais despudorado dos poemas de Bocage.
Alice Caetano tem hoje 50 anos e é operadora em call centers desde 2002. No começo deste ano, deslogou-se de vez. A expressão “logar” (aportuguesada do inglês login) é usada nos call centers
para que o operador saiba que está pronto a atender. A decisão tomou-a
para preservar a saúde, a mental e a física, que se deteriorou com
tantos anos na mesma rotina: sentar, atender, desligar; atender,
desligar; atender; desligar; respirar; atender, desligar. Horas a fio.
Anos a fio.
Formou-se em gestão bancária, mas nunca trabalhou na área. O mais próximo que Alice esteve de o fazer foi num call center
do Banco Espírito Santo. Estávamos em 2008. E o ordenado que trazia
para casa estava longe de ser o de um gestor bancário: 550 euros. Foi em
1986 que teve o primeiro emprego como administrativa. Chegou a ter uma
papelaria sua, na Penha de França, que abriu em 1996 e fechou, anos
depois, em 2002, “por causa da crise”.
Mas antes mesmo de a fechar, e
com os jornais à mão de semear, foi folheando os classificados à procura
de emprego. Foi a dezenas de entrevistas, em bancos, seguradoras, tudo o
que aparecesse. Entre a precariedade do call center e o desemprego, não hesitou.
“Precária? Precária eu sempre fui. Mas se soubesse o que sei hoje, não tinha aceitado. Arrependo-me”, confessa Alice.
“Proibiam-nos de ir à casa de banho”
Mas afinal, do que se arrepende Alice? O que a desiludiu? “Nos últimos anos estive no call center da PT – se não é o pior call center
onde trabalhei, é certamente um dos piores. O ordenado é o mínimo
nacional. Estive lá quatro. Fazia a retenção de clientes que queriam
desistir do serviço da Meo. O primeiro ano até correu bem: havia
formação para quem chegava ao call center, havia um supervisor que se deslocava de lugar em lugar para nos ajudar se preciso fosse, era tudo um mar de rosas”, lembra.
* Escravatura "de ponta"
.
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