17/02/2016

JÚLIA CARÉ

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Refúgio Europeu
O que pretendemos para os refugiados?
Um pijama às riscas?

“Pois estava com fome e destes-Me de comer; estava com sede e destes-Me de beber; era estrangeiro e recebestes-Me na vossa casa.”
Mateus, 25-35

A recente lei dinamarquesa de confisco de bens a refugiados é mais uma prova do fracasso europeu na abordagem da questão dos refugiados. Esta lei prevê que sejam os polícias de fronteira, revistadas as bagagens, a decidir quais os bens a confiscar para o Estado, contributo nas despesas com estes cidadãos estrangeiros. Incluem-se joias, alianças, relógios, computadores, ou outros bens de valor. É inevitável a lembrança do tempo da guerra, o infame espoliar de cidadãos judeus de bens até do próprio corpo, próteses, dentes de ouro, cabelo, roupa, e da lógica do saque arbitrário dos povos derrotados, parecendo tudo uma trágica reposição de cenários que envergonham a espécie humana, e que julgávamos banidos do cosmopolita espaço europeu, pós-União. Ao vermos as reportagens sobre as ininterruptas multidões deambulando de fronteira em fronteira, Europa fora, chapinhando na lama ou na poeira à porta de urbes europeias, filhos e escassas bagagens às costas, na crença de um porto de abrigo, interrogamo-nos se não será um refinamento da indiferença, uma crueldade gratuita, espoliar esta gente das últimas lembranças trazidas de casa, quiçá a última memória afetiva do lar, na fuga pela vida. 

Distantes quer da ilha de Lesbos, quer das capitais europeias onde os refugiados se concentram, resta-nos o ajuizar parcial a partir de imagens, reportagens e relatos. Segundo se diz, os próprios não terão manifestado especial apetência pelo nosso pequeno país… Mais uma prova da descoordenação e neglicência por parte de dirigentes políticos… Mas no que toca ao acolhimento devido a refugiados, temos a nossa vivência de há 40 anos, com o drama dos milhares de retornados - meio milhão, estima-se - obrigados também a fugir pela vida de um cenário de guerra, alguns em traineiras, outros na ponte aérea entre África e Lisboa. Ouvimos relatos impressionantes de quem de um dia para outro viu perdida para sempre toda uma vida, casa, país, amigos, profissão, obrigados a começar do zero, a partir da solidariedade e do próprio engenho. Vimos rostos fechados de crianças a chegarem à escola, dor, trauma e revolta calados, mas vimo-los depois, pouco a pouco, abrirem-se em sorrisos, sob o efeito curativo do passar do tempo. No geral, vencidas ou acalentadas as dores e as inevitáveis tensões neste processo de integração, todos lucrámos…

Mas, ao contrário da situação dos retornados portugueses, não há ponte aérea, e os refugiados estão entregues ao seu engenho e a traficantes a quem pagam elevadas quantias e que os abandonam em frágeis barcos, sujeitos aos naufrágios nas costas gregas, onde lhes têm valido a parca ajuda de escassas autoridades marítimas, anónimos filantropos, ou ONGs de limitado alcance… A Europa, a quem falta estadistas para o agora histórico, a braços com problemas de liderança, focada nas questões económicas, mas acima de tudo, em perda acelerada de memória quanto às suas raízes histórico-culturais, humanistas, religiosas e míticas, parece mais preocupada com regras orçamentais, do que com a regra implícita de se reconhecer a qualquer povo o direito básico de lutar pela sobrevivência.

Não colhem os argumentos lúcidos de que os refugiados podem representar uma mais-valia na questão do envelhecimento das populações e da sustentabilidade dos sistemas de segurança social. Nem sequer conseguimos ver que estes milhares que chegam às costas da Europa, destino escolhido por acreditarem ser esta uma terra de liberdade e respeito pela dignidade humana, são os que possuem alguma afluência económica. Alguém se admira que fujam de fanáticos sanguinários e de cidades em escombros? Alguém se preocupa com os milhares que, sem meios para pagar às redes organizadas de tráfico humano, simplesmente estão a morrer no fogo cruzado de mais uma guerra estúpida?

Para além do confisco, a única solução encontrada é colocar arame farpado para conter as ininterruptas vagas de refugiados. E entretanto, crianças ficam sem escola, vidas ficam em suspenso na urgência de sobreviver no abrigo improvisado possível. Falta um sobressalto ético à comunidade internacional no sentido de se encontrar uma solução política para o conflito na base deste êxodo imenso. O eldorado europeu, a terra de liberdade e direitos humanos, onde a democracia era o santo e a senha, parece desagregar-se perigosamente, assombrada por fantasmas provenientes da ignorância e da manipulação da opinião pública, demónios adormecidos do inconsciente coletivo, que põem democracia, solidariedade, valores de modernidade, no limite a paz, em risco.

Quando a Europa da matriz cristã esquece a “ herança riquíssima em que tradição greco-latina e tradição judaico-cristã são ladeadas e interpenetradas pelas tradições germânicas, eslavas e muçulmana (que) fazem parte do retrato de grupo europeu” (Vasco de Graça Moura, 2013), e acha bem espoliar dos últimos bens, os que escapam das ondas do Mediterrâneo, a hora é de lembrar o que a intolerância é capaz; ou não tivéssemos celebrado há pouco o dia Internacional da Lembrança do Holocausto e o seu cortejo de infâmia e horrores …

O que pretendemos para os refugiados? Um pijama às riscas?

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
11/02/16

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