Refúgio Europeu
O que pretendemos para os refugiados?
Um pijama às riscas?
“Pois estava com fome e destes-Me de comer; estava com sede e destes-Me
de beber; era estrangeiro e recebestes-Me na vossa casa.”
Mateus, 25-35
A recente lei dinamarquesa de confisco de bens a refugiados é mais uma
prova do fracasso europeu na abordagem da questão dos refugiados. Esta
lei prevê que sejam os polícias de fronteira, revistadas as bagagens, a
decidir quais os bens a confiscar para o Estado, contributo nas despesas
com estes cidadãos estrangeiros. Incluem-se joias, alianças, relógios,
computadores, ou outros bens de valor. É inevitável a lembrança do tempo
da guerra, o infame espoliar de cidadãos judeus de bens até do próprio
corpo, próteses, dentes de ouro, cabelo, roupa, e da lógica do saque
arbitrário dos povos derrotados, parecendo tudo uma trágica reposição de
cenários que envergonham a espécie humana, e que julgávamos banidos do
cosmopolita espaço europeu, pós-União. Ao vermos as reportagens sobre as
ininterruptas multidões deambulando de fronteira em fronteira, Europa
fora, chapinhando na lama ou na poeira à porta de urbes europeias,
filhos e escassas bagagens às costas, na crença de um porto de abrigo,
interrogamo-nos se não será um refinamento da indiferença, uma crueldade
gratuita, espoliar esta gente das últimas lembranças trazidas de casa,
quiçá a última memória afetiva do lar, na fuga pela vida.
Distantes quer da ilha de Lesbos, quer das capitais europeias onde os
refugiados se concentram, resta-nos o ajuizar parcial a partir de
imagens, reportagens e relatos. Segundo se diz, os próprios não terão
manifestado especial apetência pelo nosso pequeno país… Mais uma prova
da descoordenação e neglicência por parte de dirigentes políticos… Mas
no que toca ao acolhimento devido a refugiados, temos a nossa vivência
de há 40 anos, com o drama dos milhares de retornados - meio milhão,
estima-se - obrigados também a fugir pela vida de um cenário de guerra,
alguns em traineiras, outros na ponte aérea entre África e Lisboa.
Ouvimos relatos impressionantes de quem de um dia para outro viu perdida
para sempre toda uma vida, casa, país, amigos, profissão, obrigados a
começar do zero, a partir da solidariedade e do próprio engenho. Vimos
rostos fechados de crianças a chegarem à escola, dor, trauma e revolta
calados, mas vimo-los depois, pouco a pouco, abrirem-se em sorrisos, sob
o efeito curativo do passar do tempo. No geral, vencidas ou acalentadas
as dores e as inevitáveis tensões neste processo de integração, todos
lucrámos…
Mas, ao contrário da situação dos retornados portugueses, não há ponte
aérea, e os refugiados estão entregues ao seu engenho e a traficantes a
quem pagam elevadas quantias e que os abandonam em frágeis barcos,
sujeitos aos naufrágios nas costas gregas, onde lhes têm valido a parca
ajuda de escassas autoridades marítimas, anónimos filantropos, ou ONGs
de limitado alcance… A Europa, a quem falta estadistas para o agora
histórico, a braços com problemas de liderança, focada nas questões
económicas, mas acima de tudo, em perda acelerada de memória quanto às
suas raízes histórico-culturais, humanistas, religiosas e míticas,
parece mais preocupada com regras orçamentais, do que com a regra
implícita de se reconhecer a qualquer povo o direito básico de lutar
pela sobrevivência.
Não colhem os argumentos lúcidos de que os
refugiados podem representar uma mais-valia na questão do envelhecimento
das populações e da sustentabilidade dos sistemas de segurança social.
Nem sequer conseguimos ver que estes milhares que chegam às costas da
Europa, destino escolhido por acreditarem ser esta uma terra de
liberdade e respeito pela dignidade humana, são os que possuem alguma
afluência económica. Alguém se admira que fujam de fanáticos
sanguinários e de cidades em escombros? Alguém se preocupa com os
milhares que, sem meios para pagar às redes organizadas de tráfico
humano, simplesmente estão a morrer no fogo cruzado de mais uma guerra
estúpida?
Para além do confisco, a única solução encontrada é colocar arame
farpado para conter as ininterruptas vagas de refugiados. E entretanto,
crianças ficam sem escola, vidas ficam em suspenso na urgência de
sobreviver no abrigo improvisado possível. Falta um sobressalto ético à
comunidade internacional no sentido de se encontrar uma solução política
para o conflito na base deste êxodo imenso. O eldorado europeu, a terra
de liberdade e direitos humanos, onde a democracia era o santo e a
senha, parece desagregar-se perigosamente, assombrada por fantasmas
provenientes da ignorância e da manipulação da opinião pública, demónios
adormecidos do inconsciente coletivo, que põem democracia,
solidariedade, valores de modernidade, no limite a paz, em risco.
Quando
a Europa da matriz cristã esquece a “ herança riquíssima em que
tradição greco-latina e tradição judaico-cristã são ladeadas e
interpenetradas pelas tradições germânicas, eslavas e muçulmana (que)
fazem parte do retrato de grupo europeu” (Vasco de Graça Moura, 2013), e
acha bem espoliar dos últimos bens, os que escapam das ondas do
Mediterrâneo, a hora é de lembrar o que a intolerância é capaz; ou não
tivéssemos celebrado há pouco o dia Internacional da Lembrança do
Holocausto e o seu cortejo de infâmia e horrores …
O que pretendemos
para os refugiados? Um pijama às riscas?
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
11/02/16
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