Anticomunista, obrigada!
Ou António Costa é um génio político e submete os parceiros à sua imponderável vontade ou caminhamos para a mais grave crise de regime depois do 25 de Abril
Não estava à espera neste ponto da minha vida e neste ponto do século
XXI, dobrado o século XX há uns aninhos, de ver aparecer a acusação.
Anticomunismo. Parece que qualquer pessoa que não confie na bondade
intrínseca de um acordo de governo com o Partido Comunista Português é
anticomunista.
Confesso ter nostalgia de muitas coisas, mas não desta. A
de repensar o anticomunismo privado. Sou ou não anticomunista? E se
for? A questão não é meramente ideológica, é existencial. É, por assim
dizer, teológica. Cheguei à conclusão, depois de muito matutar, de que
sou anticomunista. Acredito na economia de mercado, no capitalismo
regulado e na iniciativa privada. Não acredito na coletivização da
propriedade e da economia, na eliminação da competição nem na taxação
intensiva do capital. O atual Partido Comunista não partilha estas
minhas convicções. É coletivista, e foi sempre, ao contrário do que nos
querem convencer, pragmático. O PCP foi sempre pragmático e
anti-idealista por natureza. Nunca foi um partido romântico e só teve um
panfleto literário romântico, os “Esteiros”, de Soeiro Pereira Gomes.
Tirando isto, o PCP é um bloco realista e de realismo social, no sentido
que a palavra tinha no século XIX. Para o PCP, a marcha da História é
marxista, o sentido da História é o da extinção do capitalismo (e não a
sua regulação) e o da criação de uma nova consciência social, cívica e
política nas mãos do proletariado e das suas vanguardas, organizadas em
comités, ou no que lhes quiserem chamar, que controlem os meios de
produção e os seus instrumentos financeiros. O PCP era isto. E é isto.
Por
razões históricas, fui sempre anticomunista. E por razões ideológicas,
também. Sou uma anticomunista que não tem vergonha de ser anticomunista e
que tem e teve amigos comunistas (mais teve do que tem, porque tudo o
que se relaciona com esta doutrina é, irremediavelmente, passado). Claro
que podem ler nesta frase — “tenho amigos comunistas” — a mesma
desconfiança que leem quando os homofóbicos dizem que têm amigos gays.
E, já que falamos disso, o PCP sempre foi ferozmente antigay. Só se
mudaram. Já lá iremos.
Sou anticomunista por razões históricas e
profundamente temperamentais. Como boa individualista que sou, tenho
horror a coletivismos impostos, e uma boa parte da minha adolescência e
entrada na idade adulta foi passada a assistir e a resistir a isto.
Posso mesmo dizer que, doutrinariamente, o que me definiu foi ser
anticomunista. O fascismo tinha terminado no 25 de Abril. O fascismo foi
outro regime totalitário que não percebeu a História. Comecemos pelo
princípio.
Na Faculdade de Direito de Lisboa, os estudantes
comunistas tinham o estranho hábito de decretar greves gerais sem
consultarem todos os alunos nessa votação. Um aluno chegava à faculdade e
diziam-lhe: hoje não entras, há greve. Há greve? Quem votou? Nós. Nós
quem? Numa reunião secreta. Se foi secreta, como é que votámos? Nós
votámos. Por causa desta discussão insana que despertava em mim
instintos libertários e anarquistas, cheguei a furar uma ou duas greves
com mais uns dementes como eu que não gostavam de ser paus-mandados. De
um lado tínhamos os gorilas e do outro lado tínhamos as greves
obrigatórias dos comunistas, que se arrogavam o monopólio da
contestação. A UEC era formidável nisto, no monopólio da contestação, e
quando o MRPP tentou furar este monopólio teve o apoio de boa parte dos
estudantes, que estavam fartos da UEC e dos seus esbirros da MJT. A MJT
era o braço armado dos comunistas e chegou a encerrar alunos dentro das
aulas para bater nos maoistas à vontade depois de deixar sair os outros,
os “cobardes”. Uma das vezes, escapuli-me por uma janela antes que a
MJT entrasse armada de matracas e correntes de bicicleta. A MJT era o
operariado da UEC para a porrada. O Movimento da Juventude Trabalhadora.
Quando o COPCON entrou pela faculdade, dando cabo de tudo à passagem,
esgueirei-me para Coimbra em “transferência secreta” (não podíamos fugir
da revolução em curso) e implorei ao professor Rui Alarcão que me
aceitasse na vetusta instituição. Em Coimbra, vigorava um comunismo
soft. Os comunistas controlavam tudo muito civilizadamente. Sem pressões
e mantendo o currículo académico. Restava o problema dos sovkhozes e
dos kolkhozes. Sobrando em Direito professores comunistas que não
abdicavam da coletivização dos bens e dos meios de produção, fomos
obrigados a estudar marxismo coagidos pela frase: quem vier para as
minhas provas escritas e orais defender a propriedade privada pode
contar com um chumbo. Andei em guerra até ao fim do curso com um
professor chamado Orlando de Carvalho, que jurou que me chumbaria em
qualquer circunstância (deu-me 14 depois de eu ter encornado a sebenta
toda, incluindo as cedilhas e os pontos e vírgulas e, salvo erro, a
célebre nota 64). O Orlando era um comunista católico envergonhado. Era
um coletivista desavergonhado e um misógino desembestado. Sem dinheiro
para ir estudar para fora e fugir desta gente, achei que mais valia
submeter-me e engolir a teoria, engolir os kolkhozes e os sovkhozes (que
eram de outro professor comunista) e despachar-me daquilo. Foi o que
fiz.
O Partido Socialista parecia-me, com Mário Soares e a
doutrina do socialismo democrático, a única oposição responsável ao
totalitarismo de Cunhal e dos militares que não queriam regressar aos
quartéis. Estive na Fonte Luminosa, claro, e assisti ao lento e
duríssimo processo da democratização de Portugal. Os comunistas eram o
que tinham sido sempre, intratáveis e muito pragmáticos. Quem não era
por eles era contra eles. Nunca entrevistei Cunhal até ao fim da vida
dele porque sempre recusei mostrar-lhe a entrevista para ele editar à
vontade. Não iria à Soeiro Pereira Gomes. Um dia, consegui negociar.
Iria à Soeiro Pereira Gomes, mas editaríamos o texto juntos. No que eu
não concordasse, não passaria a emenda. Cunhal aceitou, e a conversa
resvalou para Shakespeare e o “Rei Lear”, que ele queria traduzir
(acabar de traduzir). Não emendou nada da entrevista. Álvaro Cunhal, com
perto de 80 anos, tinha adoçado e era uma figura intelectual
respeitável que eu respeitava muito. Já não era o inimigo. Havia uma
diferença entre conversarmos sobre Shakespeare — o “Rei Lear” é a minha
peça favorita e era a dele, um tratado sobre o poder e a partilha do
poder — e ter o doutor Cunhal a mandar na minha vida. Na verdade, anos
antes, o doutor Cunhal quisera fazer de Portugal a jangada de pedra do
estalinismo europeu. Uma espécie de little Bulgária. Do PCP tinham
entretanto saído muitos dissidentes, enquistados com a ausência de
democracia intrapartidária. Muitos desses dissidentes eram ou tinham
sido comunistas ortodoxos, dos que aplaudiram de pé a entrada dos
tanques do Pacto de Varsóvia em Praga. Eu estava, sempre estive e
estarei com os dissidentes checos, com Václav Havel e com a democracia.
Em
Portugal, o PCP sufocou todos os desvios à sua norma ou absorveu toda a
contestação não emanada das suas instâncias representativas da massa.
Da massa, sim, não da cultura de massas. Por um lado, o PCP tinha a
tradição da clandestinidade e da coragem na clandestinidade e não
admitia dissidências desta tradição. Julgava-se o único detentor da
verdade contestatária (como se tinha julgado na Faculdade de Direito o
único autor das greves estudantis). Por outro lado, a cultura de massas
assente no individualismo era-lhe profundamente estranha. No meio
literário português dominava largamente, não apenas através das
instituições que controlava (da APE à SPA) como através dos compagnons
de route sem filiação na extrema-esquerda radical e sem movimentos
adequados à sua representação. O papão da direita e um esquerdismo
social unia esta gente. Mais um certo aggiornamento chique que, pensavam
erradamente, o PCP lhes conferia. A Festa do “Avante!” era um dos
altares desta missa. O PCP pode ter muitos defeitos, mas nunca foi um
partido estúpido, embora tenha sido apanhado desprevenido com a queda do
Muro de Berlim. Quem não foi? O PCP olhou para Gorbachev primeiro com
ódio e depois com incredulidade. O império soviético desmoronava-se. Os
que acreditaram numa mudança de mentalidades dentro do PCP depressa
foram expelidos ou condenados pela inquisição do partido. O PCP não
mudara. O mundo mudara sem ele.
A atitude intelectual totalitária
que caracteriza o PCP deixou como legado a anemia intelectual
portuguesa. O neorrealismo deixou de ser dominante, mas não chegou a ser
substituído por movimentos herdeiros da modernidade e do modernismo.
Nem por um esboço de pós-modernismo importado de Paris. Esta é a nossa
tradição. Os grandes intelectuais portugueses sentiram-se sempre
exilados dentro do seu país, como Fernando Pessoa e Alexandre O’Neill,
ou exilados reais, como Jorge de Sena. Ou como Eduardo Lourenço, que
sofreu a ansiedade da separação. E havia os açorianos, uma casta
especial de solipsistas, de Vitorino Nemésio a Natália Correia. São,
todos, navegadores solitários. Pessoa teve a sorte de ter tido a geração
de Orpheu a fazer-lhe companhia.
Basta ir a Londres e à Tate
Modern, e visitar a exposição “The World Goes Pop”, para ver como
Portugal não consta desta revolução. É a única ditadura ocidental dos
anos 60 e 70 que não teve representantes e cultores pop. Não teve
movimento pop. Não teve a anarquia pop. O protesto pop. A arte pop. O
Brasil teve, a Argentina teve, o México teve, a Espanha teve, o Chile
teve. Portugal não teve. Devemos isto ao PCP e à hegemonia do PCP num
país pequeno e sem mercado de ideias, vinculado ao Estado e aos ditames e
subsídios e cargos do Estado. A única escritora portuguesa que
verdadeiramente escapou a esta hegemonia foi Agustina Bessa-Luís, e por
isso ela permanece o ícone intelectual da direita (da nova direita) e
por ela é exaltada e venerada. Agustina era o triunfo do individualismo
desde que decidira escrever “A Sibila”. Agustina detestava os
comunistas, não por serem comunistas mas por não serem livres. Tive com
ela esta discussão e sei que as palavras de Agustina eram diferentes das
palavras de todos os outros escritores, incluindo os liberais
cosmopolitas que estavam próximos do PS, como Sophia de Mello Breyner ou
David Mourão-Ferreira. Agustina não é, não era, nunca foi de esquerda.
Nunca precisou de uma moral de esquerda, tal como esse lúcido libertário
chamado Mário Cesariny de Vasconcelos.
Para a nomenclatura do
PCP, ser de esquerda era mais benéfico do que ser comunista, quando se
tratava de escritores. Controlando as instituições, o PCP resistia a dar
prémios literários a José Saramago. Porquê? Dava-os aos outros e não a
ele. Deu a José Cardoso Pires e a Paulo Castilho ou Mário Cláudio. Nunca
deu a “Memorial do Convento” e a “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.
Porquê?
Assente-se que Álvaro Cunhal não gostava de Saramago. Nem
pessoalmente nem literariamente. Cunhal era um esteta, um romancista
falhado, e nem no estilo nem na receção crítica do estilo, relacionados
com a pureza do neorrealismo, podia identificar-se com a retórica do
escritor-estrela dos comunistas. Saramago era um maneirista inspirado
pelo padre António Vieira e o Século de Ouro espanhol, e mais depressa
apanhariam Cunhal a aplaudir a subversão existencialista de um Albert
Camus do que um missionário jesuíta do século XVII. Saramago era um
escolástico, e Cunhal abominava a escolástica. Ninguém reparou nisto.
Foram mais rivais do que Eça e Camilo foram. E o PCP nunca gostou de
estrelas.
E a direita? A direita portuguesa foi sempre preguiçosa
e tendencialmente analfabeta. Quando digo a direita, digo o capital, os
capitalistas portugueses. Simbolicamente gordos e anafados como nas
caricaturas de Vilhena, nutriam pelos socialismos e pela
social-democracia um ódio rancoroso e viviam no passado. Sá Carneiro foi
tolerado por eles, não foi amado. Até nascer o novo capital, o das
novas empresas e grupos e dos novos assalariados de luxo do novo
capitalismo português, a direita era uma caricatura sem ideologia com
uma ou duas figuras excecionais na indústria, como António Champalimaud.
Ficara presa à nostalgia do antigo regime, sem particular
engrandecimento da memória imperial, às vezes por ignorância, e a uma
postura cívica sem mestre intelectual. Os raros ativistas letrados e
revolucionários desta direita sentiam-se órfãos. Como dizia um deles, a
direita portuguesa era do género: vão andando que depois vou lá ter. Os
outros converteram-se e decidiram trabalhar com quem estivesse no poder.
Nascia gente na banca e nas empresas, produto da democracia e da
pequena burguesia dos partidos, que não se revia na direita mumificada.
Esta ficou à espera de D. Sebastião e chegou a ver nos traços
endurecidos de Aníbal Cavaco Silva, um membro do povo que tinha tudo
para lhes ser estranho, a face do salvador. Como vira em Salazar.
Neste
ambiente, PCP e PS dominaram tudo. Dominaram a literatura, dominaram a
música, o teatro, o cinema, a fotografia, as artes, o jornalismo, a
crítica, tudo. Foi preciso esperar pela agonia do século XX para esta
dominação se atenuar. A revolução tecnológica capitalista pôs-lhe cobro
de vez.
No século XXI, amigos meus que tinham sido comunistas
desde crianças, como Miguel Portas, confessavam a sua desilusão com o
comunismo e a crença numa nova esquerda. O que Miguel Portas fez, e só
fez, foi tentar experiências de esquerda que escapassem à ditadura
intelectual comunista. Revistas, jornais, intervenções, plataformas e,
finalmente, a criação do Bloco de Esquerda. Pressagiei que as alianças
entre estes esquerdistas ilustrados e estrangeirados e os radicais da
extrema-esquerda e de partidos como a UDP não seria um casamento feliz.
Não foi. As tensões dentro do Bloco desaguaram nas dissidências do
Bloco. Assisti a isto mais ou menos por dentro e discuti isto muitas
vezes. O Bloco era importante para as causas ditas fraturantes, porque o
PCP era um partido ferozmente conservador e antirrevolucionário nos
costumes. Tendo criado a sua moral, a sua igreja e a sua liturgia, o PCP
nunca transigia. Era nisso simétrico da direita reacionária. A aliança
tática entre PS e Bloco permitiu “desbloquear” certa legislação que
andava pendurada há anos na boa consciência de católicos e de
direitistas.
O contributo de forças como o PCP e o Bloco para a
democracia portuguesa é importante, apesar destes desníveis. Mas só é
importante por ter sido enquadrado e travado pelo socialismo democrático
dos socialistas e a social-democracia dos sociais-democratas.
Tal
como o PSD, o PS tem sofrido um desgaste e uma desvalorização
intelectual preocupantes. O PS de homens como António Arnaut ou Mário
Soares já não existe. Nem sequer existe o PS de António Guterres. O PS
de hoje divide-se entre os socratistas, com tudo o que de nefasto essa
denominação representa, os oportunistas e os apoiantes de qualquer chefe
que conduza ao poder um grupo de gente que sabe que o partido precisa
de lançar mão do aparelho de Estado para sobreviver politicamente.
Junte-se ao caldo meia dúzia de jovens idealistas sem maturidade. À
direita, o “ideologismo” (chamar-lhe ideologia seria um manifesto
exagero) pseudoneoliberal de Passos Coelho e dos videirinhos amestrados,
de que Relvas é a caricatura apurada, forneceu a uma gente desavinda
pela História o último pretexto para a união.
Uma união que nunca
se consumaria. O PS não é coletivista. Não foi. Não será. É um velho
partido de católicos e de maçons que se sente ameaçado e está a jogar
póquer fechado com altas paradas. E a direita de Passos perdeu esta
jogada, num espanto emudecido que não provocou um texto, um pretexto, um
protesto. A direita portuguesa continua a dizer: vai andando que já lá
vou ter. Deixou a contestação aos jornalistas e articulistas que julga
protetores do statu quo. Esta nova aliança das esquerdas descambará em
novas direitas, seguramente.
A destruição do centro, à esquerda, e
a insensatez de quem nos tem governado, à direita, tornaram o combate
ideológico um combate tribal, como o futebol. Um combate onde não vingam
a inteligência e a ilustração. Muito menos a memória. Não é preciso
invocar a Europa e a sua putativa falência, ou o diktat de Bruxelas,
para concluir que o PS abriu a boceta de Pandora. Convencidos de que os
comunistas mudaram, os socialistas serão, como recusaram historicamente
ser, chantageados por um partido que joga aqui a sua derradeira cartada
da História. O comunismo acabou em toda a parte, mas não aqui, não aqui.
E não acabou aqui porque a desigualdade e a pobreza que a direita
exalta em Portugal como regra de vida comum, como modo operativo de um
capitalismo egoísta, autodidata e desmembrado, são a bandeira do PCP.
São o seu eleitorado. Juntem-lhe os funcionários públicos num país
envelhecido onde todos dependem do Estado, da banca aos artistas, e
temos a explicação do anacronismo chamado Partido Comunista Português.
Tal como o capital, o trabalho sabe defender-se.
O Partido
Socialista meteu-se nesta querela sem ter trunfos na manga. Perdeu as
eleições, e isso faz toda a diferença na potestade. O PS não tem sobre o
PCP e o BE um direito potestativo. São eles que o têm, e exigirão a
submissão. Não sei como sairá disto. Sei que das duas uma. Ou António
Costa é um génio político e submete os parceiros à sua imponderável
vontade ou caminhamos para a mais grave crise de regime depois do 25 de
Abril. E, talvez, para o fim do regime saído do 25 de Abril.
Quanto a mim, sou o que sempre fui. Portuguesa e anticomunista, obrigada. Nisso, não mudei.
IN "EXPRESSO"
07/11/15
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