01/11/2015

ANA RITA GUERRA

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Trabalho sujo: 
uma lição que começou 
com cocó na cara

Há doze anos, surgiu um programa de televisão chamado 'Dirty Jobs' (Trabalho Sujo) que mostrava os empregos mais incríveis do mundo.

Esteve 7 anos no canal Discovery e foi agora reformulado pela CNN, sob o nome ‘Somebody’s gotta do it’. À frente das câmaras está o mesmo homem, Mike Rowe, que todas as semanas mostra aos espectadores o que normalmente ninguém vê. 

Tal como o nome do programa indica, alguém tem de fazer os trabalhos mais perigosos, exigentes e indutores de vómito que nos permitem viver num mundo limpinho – em que a água suja vai pelo ralo e ninguém tem de olhar para o autoclismo enquanto este faz o seu trabalho. Rowe esteve na semana passada no encerramento da conferência Teradata Partners, na Califórnia, uma presença que aparentemente não tinha relação nenhuma com o software analítico e os centros de dados da empresa. Mas o que ele contou acabou por fazer sentido, numa altura em que se agrava o desajuste entre as capacidades em que as pessoas se formaram e aquelas que o mercado pede. 

É difícil imaginar que uma grande lição económica venha de uma descida aos esgotos, mas foi por aí que tudo começou. Em 2001, Rowe trabalhava num segmento noticioso da CBS, ‘Evening News’, quando teve a ideia de mostrar como são os esgotos de São Francisco. A reportagem foi um desastre. Rowe levou com cocó na cara, por causa de um efeito de pressão que causa pequenas “explosões” de matéria fecal variada, entraram-lhe baratas para a boca e um rato meteu-se nas botas dele. Tudo enquanto o operador de câmara vomitava e o inspector do esgoto, Gene Cruz, lhes dizia para deixarem de se meter com a fauna local e darem uma ajuda na tarefa, que era a substituição de tijolos apodrecidos. 

As imagens são de virar o estômago, mas no dia seguinte Rowe recebeu cerca de 10 mil mensagens com ideias de reportagens noutros empregos assim, muito pouco convencionais, e o Discovery pegou na ideia. O que surpreendeu Mike Rowe foi o profissionalismo e conhecimento de Gene Cruz, engenheiro de formação, enterrado até aos joelhos num pântano acastanhado com “balões” de borracha transparente a agarrarem-se frequentemente às botas. 

“Em 2009, quando os números de desemprego batiam no máximo, eu via avisos de ‘ajuda precisa-se’ em todo o lado”, disse Rowe, explicando como a sua jornada por todos os estados norte-americanos lhe mudou a perspectiva económica. Os patrões com quem falava diziam o mesmo: não conseguiam encontrar pessoas que estivessem dispostas a usar novas ferramentas, fazer formação e potencialmente mudar de casa. “A minha teoria é de que confundimos problemas [desemprego, deslocalização] com sintomas de uma relação desligada com o trabalho”, explicou. “Há três milhões de vagas disponíveis e vários milhões de pessoas desempregadas e capazes. Estamos a emprestar dinheiro a jovens que nunca poderão pagá-lo de volta, para os formar em empregos que já não existem.” É claro, o problema dos empréstimos para os custos do ensino superior são de loucos nos Estados Unidos, chegando aos 200 mil euros por aluno. Mas a conclusão é universal: enquanto o mercado tem necessidades tremendas em áreas onde a mão-de-obra qualificada escasseia, há profissões em que só abunda o desemprego. Duvido que alguém sonhe com castrar cabras ou examinar crocodilos e certamente mudar de profissão não é algo que todos possam fazer. Mas não é disto que falamos quando enaltecemos os fazedores? Pessoas que se re-qualificaram, que mudaram de cidade ou de país, que identificaram oportunidades e criaram os seus nichos? 

Mike Rowe pode não fazer a mínima ideia do que é big data, software analítico e centros de dados na nuvem, as principais ofertas da Teradata. No entanto, considera que estes “cientistas dos dados” são como canalizadores do século XXI. “Eu vejo o horror na cara das pessoas quando o cocó não desaparece sanita abaixo, quando as luzes não se acendem ou a internet não liga imediatamente com esses pós de perlimpimpim ou que raio vocês põem no computador”, disse Rowe, no final da sua apresentação. “No segundo em que uma destas coisas não funciona ficamos ofendidos! Não é engraçado?”. Sem dúvida, Mike, sem dúvida.

IN "DINHEIRO VIVO"
29/10/15


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