A arte da fuga, no Pontal
Pensando
no período eleitoral que se vive, “fuga para a frente”, em política,
significa avançar, intrepidamente, com o cabelo nos olhos, e rezar para
que corra bem!
"Arte da Fuga", de Johann Sebastian Bach (1685-1750), é
uma obra a todos o títulos verdadeiramente extraordinária e
inultrapassável enquanto síntese de um tempo - o pós-Idade Média
estendido até ao final do Barroco -, e símbolo de uma cultura - a
cultura europeia que floresceu por entre a exuberância do catolicismo do
sul e a ascese protestante do norte.
Esta obra grandiosa do
património musical da Humanidade é constituída por um conjunto de
catorze fugas e quatro cânones (formas musicais relativamente
complexas), mas tem a particularidade de todos os temas, de cada fuga e
cânone, serem baseados num único tema de grande simplicidade, mas
extremamente adaptável e flexível, que permite demonstrar exemplarmente o
quanto se pode fazer a partir da quase insignificância, desde que se
use a imaginação e a sabedoria.
Na "Arte da Fuga" de Bach, o
importante não é o tema, mas sim a forma como ele é apresentado,
metamorfoseado e sublimado. Da simplicidade da mensagem, rumo à
construção magnífica do seu suporte, Bach transcende-se na condição de
mortal.
Fuga, expressão que designa a velha forma musical
baseada na "imitação" de excertos de melodias, transformados e
complicados quase até à total abstração, em português é também sinónimo
de fugida/escapatória/evasão. Pensando no período eleitoral que se
vive, "fuga para a frente", em política, significa avançar,
intrepidamente, com o cabelo nos olhos, e rezar para que corra bem!
Irresponsavelmente, lembra-me a promessa de Passos Coelho no Pontal de
que irá tornar Portugal numa das dez economias mais competitivas do
mundo. Lembra-me o anúncio da coligação de que irá recuperar na próxima
legislatura o mesmo Estado social que tentou derrubar na presente
legislatura, depois de quatro anos a desmantelar sistematicamente o
edifício social do Estado, exercício que está a levar persistentemente
até aos últimos dias da governação - veja-se a recente transferência de
mais 60 milhões de euros para o ensino privado, deixando a escola
pública à míngua.
Por outro lado, a arte de passar uma mensagem
de grande simplismo (a alegada "bancarrota" socialista e o alegado país
do sucesso da ‘troika'), embrulhado em grande aparato, aparenta-se,
mesmo que muito longinquamente, com arte de compor em estilo fuga e
contraponto a partir de um pequeno tema: a descida do desemprego
festejada pela coligação esquece os 218 mil empregos a menos em
Portugal desde 2011 (dados do INE); o atual acesso aos mercados para
financiamento de Portugal (sem o qual entraria na mesma "bancarrota" de
2011) é, afinal, garantido pelo BCE, independentemente do ‘rating'
português (que continua no lixo); 20,4% dos portugueses, auferem hoje
salário mínimo - um aumento de 70% face a 2011; ¼ dos portugueses
encontram-se em risco de pobreza; o PIB caiu 7% desde 2011; o
crescimento da economia portuguesa em 2015 é metade da de Espanha e
igual à da falida Grécia (com inacreditáveis aplausos da maioria,
inebriada).
Afinal, não é a "Arte da Fuga", mas uma fuga sem arte nem génio.
IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
26/08/15
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