Libertar a ciência
É preciso libertar a ciência dos interesses mesquinhos de quem não quer servir a ciência mas apenas servir-se dela.
Um dos problemas das universidades portuguesas que Mariano Gago
combateu foi o da endogamia, isto é, elas escolherem as pessoas que já
lá estão, ao invés de procurarem as mais bem qualificadas. Assim, os
estudantes ficam com horizontes limitados e a escola não conhece
verdadeira renovação.
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A produtividade científica dos sistemas mais
endogâmicos também é mais baixa. Com os concursos nacionais para bolsas
de doutoramento, onde os patronos não podiam ser membros do júri, a
endogamia foi sendo mitigada.
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No tempo de Nuno Crato ela voltou,
porém, com os chamados programas doutorais, que permitem às instituições
escolherem os seus próprios estudantes de doutoramentos segundo
critérios paroquiais. O mérito do candidato passou a ser relativizado e
os supervisores passaram a poder ser parte dos júris.
Em favor destes
programas doutorais, foi feita uma razia nos concursos de bolsas
nacionais. Assim, alunos brilhantes foram preteridos em favor de outros
claramente inferiores. Sei, por exemplo, de dois casos de estudantes de
topo e com trabalhos de investigação publicados que, após concorrerem
sem êxito a vários desses programas, acabaram por ganhar bolsas Marie
Curie internacionais, para fazerem doutoramentos em França e na Irlanda.
Dificilmente voltarão a Portugal.
Um dos primeiros programas
doutorais, no país, surgiu no Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC),
pago pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Uma instituição
privada escolhia os estudantes a seu bel prazer, apesar de as bolsas
serem pagas pelo erário público Independentemente da qualidade evidente
da maioria dos candidatos escolhidos, o certo é que muitos outros de
potencial não inferior ficavam afastados por não estarem nas graças dos
responsáveis das instituições protegidas. Com Nuno Crato, que indicou
para o Conselho Nacional da Ciência e Tecnologia o ex-director do IGC,
tal procedimento foi alargado às universidades. Algumas destas, em
concursos pouco transparentes e de qualidade muito duvidosa, passaram a
poder escolher os seus estudantes, pagos pelo orçamento do Estado gerido
pela FCT.
João Lobo Antunes, no prefácio da sua biografia de Egas
Moniz, conta as grandes reservas que teve em aceitar, no início da sua
carreira, ser assistente de Pedro Almeida Lima, seu tio-avô. Almeida
Lima respondeu que era uma prerrogativa do professor escolher os seus
assistentes. O mesmo aliás tinha acontecido com ele, escolhido, ainda
aluno, por Egas Moniz. Crato quer o regresso a esta lógica do
antigamente, bem nítida nos programas doutorais. O dinheiro público
passou a ser atribuído de modo discricionário para a prossecução de
agendas particulares, sendo por vezes tudo decidido na prática por uma
única pessoa ou uma comissão de amigos. Escusado será dizer que este
método é totalmente ao arrepio das ideias de "excelência" e "mérito",
que têm sido usadas pelos ainda ocupantes do Ministério da Educação e
Ciência, mas que não encontram correspondência na prática.
É
particularmente grave num país com elevados níveis de endogamia
universitária que a FCT ponha e disponha dos ditos programas doutorais,
em conluio com alguns dos interessados.
Uma comissão de pretensa
avaliação da FCT acaba de recomendar a “descontinuação” (leia-se, o fim)
dos concursos nacionais de doutoramento. Adivinha-se a quem esta
mudança possa interessar: aqueles que, defendendo apenas os mais
próximos de si, desprezam a qualidade dos candidatos que não conhecem. O
relatório da dita comissão permitiu-se também, com grande topete,
avaliar o recente processo de avaliação das unidades de investigação,
encomendado pela FCT à European Science Foundation (ESF). Acontece que o
chefe dos avaliadores dos avaliadores, Christoph Kratky, é tudo menos
isento nesta matéria, pois não só fazia parte da direcção da ESF em
2013, quando a esta foi atribuído o referido processo, como foi o
coordenador de uma avaliação recente que a ESF realizou na Hungria. A
proximidade de Kratky à ESF não lhe permite qualquer imparcialidade. A
proximidade é tanta, que Kratky e os seus pares chegaram a citar no
relatório de avaliação da FCT um documento confidencial da ESF sobre a
avaliação realizada em Portugal. No fundo dizem: está tudo bem, mas não
nos perguntem porquê, acreditem em nós. Tudo envolto em espessa névoa, o
que há de mais anti-científico.
Além de abertura, a ciência exige
rigor e isenção, duas qualidades arredadas quer da avaliação realizada
pela ESF e pela FCT à ciência nacional, quer da auto-avaliação agora
feita pelas mesmas ESF e FCT. Não é ciência, mas sim ideologia, uma
ideologia política extremista, de cariz neo-liberal, cujos prosélitos
tentam a todo o custo tirar o maior proveito para si antes que as
eleições permitam a inevitável renovação.
É preciso libertar a ciência
dos interesses mesquinhos de quem não quer servir a ciência mas apenas
servir-se dela.
Professor universitário (tcarlos@uc.pt)
IN "PÚBLICO"
05/08/15
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