25/07/2015

JOSÉ REIS

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O dia em que se construiu
o novo muro de Berlim:
refundar a Europa com urgência

Já todas as palavras foram ditas sobre estes dias lamentavelmente novos que arrasam a Europa. Nenhuma delas é de mais e todas talvez não sejam ainda suficientes. Não interessa hoje escrutinar quem já sabia tudo, quem sabia que tinha de ser assim ou ainda quem sempre quis agarrar-se à ambição de nunca poder ser assim.

A verdade é que a União Europeia e o projeto europeu foram alvo de uma usurpação. Depois da redução das instituições comunitárias a instâncias compulsivamente medíocres, a Europa está hoje sob um processo intenso de destruição da política como forma de escolha coletiva, de vingança, de minagem de um projeto civilizacional europeu dotado de visão comum e estratégia positiva, de esvaziamento das noções elementares de democracia, da tentativa de redução a zero da toda a deliberação democrática que contenha controvérsia e alternativas. Predomina o conflito.

O projeto europeu foi derrotado, tomado de assalto, e não dispõe de condições saudáveis sem que antes haja uma profunda e radical reformulação, para a qual nos faltam utópicos e práticos como Altiero Spinelli ou Robert Schuman. É de uma agenda de refundação democrática da Europa que precisamos. Para isso, falta-nos um projeto político e os atores políticos que ainda não temos. Precisamos de quem, nos governos e nos parlamentos, fale dessa refundação e lhe estabeleça os termos. Por mais clara que seja a preferência que tenhamos por um certo cenário, precisamos de dizer que todos os cenários estão em cima da mesa. As últimas semanas, com a humilhação da Grécia e o ataque vil ao sistema político-partidário e à democracia grega, colocaram a realidade europeia num patamar de violência onde nunca tinha estado. Não pode ser Schäuble o único a ter liberdade para criar arbitrariamente os cenários que bem lhe convêm. O sinal mais duro da fraqueza europeia é que hoje, fora do diretório alemão, todas as tradições políticas, incluindo a social democrata, desistiram de ser agente de iniciativa política, interpretando a Europa de uma forma tão limitada e tão irrelevante que se contentam com o papel de polidor de esquinas da obra alemã.

O primeiro ponto de uma agenda de refundação europeia é a dissidência clara e ousada relativamente à atual trajetória destrutiva e ao poder antidemocrático instituído pelo governo da Alemanha e pelos diretórios que foi formando. O segundo é declarar sem hesitação que se denuncia o papel e a violência cínica que esse governo está a impor à mesma Europa que recuperou o seu país das cinzas geradas pela fogueira que ele próprio tinha ateado. Não é preciso lembrar nada — ou será preciso lembrar tudo?  sobre a dívida alemã do pós guerra, que se prolongou por várias décadas. E é preciso dizer-se que é contra tudo isto que uma base de refundação pode ser encontrada. Sim, é de uma posição negativa que tem de se partir, tal a situação a que chegámos. O terceiro ponto da agenda de dissidência é ganhar uma noção muito rigorosa do que constitui a proposta de governação económica europeia, em que alguns veem agora a solução.

Sobre este último aspeto, vale a pena dizer que, se a UE quisesse ter uma governação económica capaz, já há muito teria pelo menos um orçamento comunitário digno desse nome, que não se limitasse à magra proporção de 1% do seu PIB. Um orçamento que, depois dos alargamentos e da política de coesão que conseguiu desenvolver noutras fases, constituísse uma base suficiente para estabelecer políticas de desenvolvimento interno, incentivar transferências de capacidades produtivas e difundir os níveis de qualificação que permitem encarar a convergência real de todos os seus espaços, incluindo as periferias que a convergência nominal encerrou numa lógica infernal de fragilização, dependência pelo crédito e sujeição a financiadores.

Mas tal como em Portugal se põem as pessoas a discutir coisas que deviam ser importantes sob eufemismos enganadores, também na Europa gente responsável usa o mesmo estratagema. Por cá, já sabemos o que está por detrás do termo “reformas estruturais” ele apenas quer dizer desvalorização salarial, desproteção jurídica e social e desmantelamento do Estado Social, com criação de mercados em todos os aspetos das nossas vidas. Pois na Europa o eufemismo “governação económica” quer dizer mais ou menos a mesma coisa, acrescido de estrito liberalismo orçamental, de forte proteção dos sistemas bancários e de irrelevância das políticas fiscais equitativas.

IN "PÚBLICO"
24/07/15


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