01/06/2015

ALBERTO GONÇALVES

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O homem que caminha 
ao lado das pessoas

Ramalho Eanes apurou que Sampaio da Nóvoa é uma "inteligência superior". Sem acesso aos estudos científicos que decerto fundamentaram a opinião do general, analisei com cuidado os princípios da candidatura presidencial do citado génio, apresentados há dias no Porto. Terminei fascinado.

O prof. da Nóvoa promete abraçar o "legado" dos ex-presidentes que o apoiam, na medida em que um chefe de Estado "não deve agir nem contra nem a favor dos governos ou oposições". É bem visto: Jorge Sampaio usou Santana para sossegar o PS e patrocinar a ascensão do lendário Sócrates. Soares passou o segundo mandato em campanha contra Cavaco. Eanes cozinhou um partido privativo.

O prof. da Nóvoa exigirá que a Europa abandone as "políticas de austeridade". Embora pareça impossível, há mesmo indivíduos convencidos de que a abundância se estabelece por decreto.

O prof. da Nóvoa não aceitará sem referendo "mais medidas que retirem soberania a Portugal". A ideia subjacente é a de que temos escolha, ou uma escolha que não conduz à bancarrota num ápice.

O prof. da Nóvoa deseja que os portugueses travem "um amplo debate" sobre a Europa. É igual a discutir a FIFA na assembleia geral do Olhanense: não se espera que a Europa trema.

O prof. da Nóvoa prestará "atenção especial ao combate à corrupção e à promiscuidade entre a política e os negócios". Presumivelmente, ainda não acredita que será o candidato do PS.

O prof. da Nóvoa propõe um "compromisso claro na luta contra a pobreza e contra o aumento das desigualdades". É o modelo grego ou, na versão tropical, "bolivariano", que em geral acaba com a classe média de rastos e a igualdade obtida na partilha da miséria.

O prof. da Nóvoa defende que "um presidente pode ser muito mais do que tem sido, (...) pode ser alguém que junta, que une, que abre o futuro quando caminha ao lado das pessoas". Curioso: se alinharmos umas palavras a seguir às outras forma-se qualquer coisa semelhante a uma frase.

O prof. da Nóvoa assume que "ser poeta também é essa inabilidade para o mundo do lucro". Tradução: de lirismo em lirismo até ao prejuízo final.

O prof. da Nóvoa acha que "não podemos continuar a forçar a emigração dos nossos jovens mais qualificados". Evidentemente, muitos dos idosos sem qualificação perceptível ficaram por cá.

O prof. da Nóvoa admite ser um candidato que "incomoda muita gente". O termo adequado é embaraça. Embaraça.

A conclusão a que cheguei é que o prof. da Nóvoa é de facto uma inteligência superior. A quem? No mínimo, aos espécimes que o levam a sério -os que fingem levá-lo a sério por estratégia ou gozo não contam.

Segunda-feira, 25 de Maio

Casos de polícia
Mas o país não sabe o que quer? Se as pessoas ignoram os partidos, desata-se aos gritinhos por causa da falta de cultura cívica e similares. Se as pessoas acorrem em massa e frenesim à assembleia geral do Partido Democrático Republicano, o chefe Marinho e Pinto classifica o fenómeno de "caso de polícia" e suspende o pagode. O facto de as pessoas em causa alegadamente pertencerem à Igreja Maná explica parte da atitude. O facto de terem apresentado uma lista ao conselho nacional e ameaçado a liderança do popular jurista explica o resto. O lado democrático do PDR aposta na discriminação religiosa. O lado republicano prefere a autocracia.

Nada mau para uma agremiação que, no seu site, jura identificar-se "com todos e cada um dos Cidadãos" (a maiúscula não é minha) e deseja "ampliar o conceito de Representatividade" (eu avisei), pelo que apela: "Venha connosco e navegue neste Novo Projecto Político" (não saímos disto). Se o excesso de marujos levou o PDR ao fundo, só a comédia está de luto.

Terça-feira, 26 de Maio

Os miseráveis
O INE revelou o número de suicídios em 2013 e, misteriosamente, quase ninguém avançou com interpretações alusivas. Deve ser porque o referido número desceu (2,1% face a 2012). Há cerca de um ano, o aumento dos suicídios levara peritos e amadores a responsabilizarem pelos mesmos a austeridade, o governo e a troika. Se houvesse coerência, a esta hora estariam a enaltecer o caminho do progresso que tão sabiamente o Dr. Passos Coelho nos ajudou a trilhar. Mas não há coerência, pelo que se arranjou apenas os palpites de um ou dois moços amuados com os números e desconfiados da falsidade destes. Primeiro, foi a diminuição do crime e dos divórcios indígenas. Agora é a preguiça dos suicidas a perturbar as teses e forçar à revisão da realidade.

Percebo que se ganhe a vida a "provar" a influência da crise económica nas mais extraordinárias coisas, dos casamentos à natalidade, dos distúrbios na bola às inscrições na IURD. Porém, estabelecer um nexo entre os apertos materiais e a ingestão deliberada de E-605 Forte é capaz de ser excessivo. Ou é presumir que a Coreia do Sul (taxa de suicídio: 28,5 por 100 000) e a Bélgica (17,0) são cenários de miséria, enquanto o Peru (0,9) e a Jamaica (0,1) não sabem o que fazer a tanta fartura. Em último caso, duvida-se dos dados.

Sobre um assunto distinto, a ONU anunciou que nos últimos 25 anos a fome no mundo caiu drasticamente. Sendo improvável que peritos e amadores atribuam a melhoria ao capitalismo "selvagem", é provável que acusem as estatísticas de ocultar a fome envergonhada. Pelos vistos, a vergonha é exclusiva dos famintos, e intransmissível aos que comem à sua custa.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
31/05/15


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