Amor de mãe
A forma mais elevada de vida em sociedade não se conquista através da exigência de mais amor pelos nossos (que é coisa que não costuma faltar), mas de mais amor pelos outros.
Daniel Oliveira escreveu um texto no Expresso Diário
intitulado “Mãe que arrepia” sobre a reacção da mãe do jovem de 17 anos
que assassinou barbaramente um miúdo de 14, em Salvaterra de Magos. Essa
mulher escreveu um texto impressionante no Facebook, que tem sido
bastante comentado por fugir por completo ao papel tradicional da mãe
abnegada, que coloca o amor aos filhos acima de todas as coisas: “Neste
momento, estou de luto, enterrei um pedaço de mim que não consigo
entender como pôde fazer tamanha crueldade. Deus me perdoe o que vou
dizer, o meu filho morreu, o que fez vai ter de pagar e sozinho, pois
não posso acompanhá-lo nesta etapa. (…) Preferia mil vezes que ele
estivesse no lugar do Felipe. (…) Os pais não têm de pagar pelos erros
dos filhos e vice-versa. (…) Peço desculpa a todos os familiares e
amigos do Filipe. Ninguém vai conseguir curar a dor da perda. Peço
perdão, não posso fazer mais nada nesta hora.
O artigo de
Daniel Oliveira exibe uma indignação profunda pela atitude desta mãe.
Escreve ele: “Não posso, sem precisar de mais nada para além do meu
instinto paternal, deixar de me arrepiar com a forma como a mãe do
homicida de Salvaterra ofereceu à comunidade, na busca de perdão para
si, o seu filho para sacrifício.” No seu entender, “os pais amam
irremediavelmente as suas belas ou horrendas criaturas” e, por isso,
espanta-se que “haja tanta gente que não sinta que o amor pelos seus
filhos é incondicional e irrevogável. Acima do bem e do mal”.
Um
importante ponto prévio: não quero avaliar em concreto as condições de
vida daquela família, os traumas do homicida — que cresceu longe dos
pais e a saltar entre instituições
ou o perfil psicológico da mãe, que entretanto já se mostrou
arrependida do que escreveu e disse que iria acompanhar o filho em
tribunal. Interessa-me, isso sim, discutir a ideia de que o amor pelos
filhos está “acima do bem e do mal”, não por acaso uma frase
nietzschiana que tenta superar as categorias clássicas da moral cristã.
Moral essa, convém recordar, construída a partir da fé num Deus que
entrega o próprio filho para morrer na cruz —
ou seja, antes da secularização do mundo, o amor dos pais pelos filhos
nunca esteve acima do bem e do mal (é começar nos gregos e acabar em
Shakespeare), e até a própria mitologia lusitana cultiva com denodo e
admiração a lenda de Egas Moniz, que se entregou de baraço no pescoço,
juntamente com a mulher e os seus filhos, ao rei de Castela.
A forma mais elevada de vida em sociedade não se conquista através da exigência de mais amor pelos nossos (que é coisa que não costuma faltar), mas de mais amor pelos outros
daí o interesse da mensagem cristã, mesmo para quem é ateu, desde que
tenha superado os tiques mata-frades. Ela é um convite para sair do
nosso reduto em direcção ao outro, ainda que esse outro não nos seja
próximo melhor: sobretudo se ele não nos for próximo. Se Daniel Oliveira ficou horrorizado por uma mãe declarar o abandono do seu filho e consigo entender isso, ainda que lhe aconselhe a audição de Uma canção desnaturada, de Chico Buarque e isso, no mundo em que vivemos, é tanto mais raro quanto digno de admiração.
IN "PÚBLICO"
21/05/15
.
IN "PÚBLICO"
21/05/15
.
Sem comentários:
Enviar um comentário