Aspectos da poesia
de louvor a José Sócrates
Após a publicação do segundo hino de homenagem a José Sócrates, os
principais observadores chegaram a algumas conclusões interessantes. A
primeira, e mais evidente, foi esta: entre os maiores apoiantes do
antigo primeiro-ministro, não há ninguém com ouvido para a música. Creio
que talvez haja aqui uma precipitação. Na minha opinião, a desarmonia
de ambas as canções pretende obter um efeito duplo: colocar em evidência
o carácter também desarmónico da justiça portuguesa e infligir ao
ouvinte um sofrimento semelhante ao que José Sócrates padece no cárcere.
No segundo hino, os versos "se quiseres dizer presente / Portugal vai
estar contigo / amanhã" parecem ser interpretados por um tecido de vozes
que inclui um apreciador contumaz de bagaceiras, duas feirantes e um
coro de, pelo menos, meia dúzia de leitões.
Nestes hinos de
homenagem, a poesia é ainda mais interessante do que a música. O poema
do primeiro hino é, à maneira de Neruda, uma canção desesperada. O poeta
começa por interpelar o próprio Sócrates: "Diz-me porquê, diz-me / Nós
não sabemos nada". Trata-se de uma poesia que lamenta não ter acesso a
processos judiciais, o que é bastante original. Estamos perante um poema
que substitui as perguntas, já estafadas, da poesia lírica (por
exemplo: "Qual é a essência do amor?"), por uma questão que mergulha nos
problemas concretos da vida ("Quais são, afinal, os fundamentos legais
desta prisão preventiva?") A primeira quadra termina com a promessa "Mas
resistiremos por ti / Até que seja madrugada", indicando que os
apoiantes de Sócrates têm coisas combinadas para a manhã do dia
seguinte. Resistem até de madrugada, mas depois, provavelmente, têm de
ir trabalhar - o que volta a introduzir no poema um tom prosaico,
lembrando uma vez mais que estamos a falar de gente de carne e osso, que
sofre, trabalha e canta francamente mal. Mais à frente, surge um verso
irónico: "Ser livre não tem preço". Uma evidente referência à liberdade
de Ricardo Salgado, cujo preço foi, precisamente, três milhões de euros.
No segundo hino, o poema conta uma história: "Era uma vez uma
criança / que sonhava ver nos montes ventoinhas a rodar". O poeta
leva-nos para a infância de Sócrates, um menino que, como tantos,
fantasiava com a instalação de dispositivos geradores de energias
alternativas. A intenção do poema é óbvia: os projectos de José Sócrates
foram sonhados na infância, e nenhuma criança sonha com corrupção,
fraude fiscal e branqueamento de capitais. O ex-primeiro-ministro
continua a ser aquele menino, o que agrava o sentimento de injustiça
relativamente à sua detenção. Não se pune um menino com a prisão.
Orelhas de burro talvez sejam um castigo apropriado. Uma palmada, no
máximo. É curioso notar que este menino venceu, nas eleições, outro
menino, o menino guerreiro. Portugal é uma brincadeira de crianças. Isto
de alguém acabar preso é uma novidade que sobressalta. Não admira que
os poetas se agitem.
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