Quanta Verdade são
os Treinadores de Futebol
Capazes de Suportar?
O futebol é um jogo de confronto direto entre duas equipas. Só existe
jogo se o confronto se concretizar na disputa do resultado. Assim,
cumpre-se o princípio básico da dialética de confronto que determina a
lógica do pensamento estratégico que, enquanto ato criativo de análise e
reflexão, num ambiente agónico, quer dizer, conflitual e competitivo, a
partir de uma dada missão, avalia e organiza recursos tangíveis e
intangíveis, estabelece e hierarquiza metas e objetivos e determina os
procedimentos e as ações a desencadear pelos agentes envolvido.
Como,
há muito, refere o Prof. Manuel Sérgio, o desporto é rendimento, é
medida, é recorde e é espetáculo, o espetáculo de maior magia à escala
do Planeta que envolve milhões de adeptos por esse mundo fora. Todavia,
uma coisa são as opiniões do apaniguado quando usa a informação que
recolhe de cada jogo e do ambiente que o circunda e outra, completamente
diferente, o pensamento estratégico do treinador que, sustentado nos
conhecimentos teóricos de uma prática refletida, através de modelos de
análise, elabora conjeturas suscetíveis de serem corroboradas na
realidade prática vivida em cada jornada do campeonato.
O
pensamento estratégico, muito provavelmente, é tão velho como a história
da humanidade. A sua tradição chega-nos principalmente dos militares de
T`ai Kung (± 900 a.C.) e Sun Tzu (± 500 a.C.) a Liddell Hart
(1895-1970); André Beaufre (1902-1975) mas, chega-nos também um
extraordinário manancial de conhecimentos produzidos por civis tais
como, entre outros, Tucídides (460 a.C. - 400 a.C.) e Nicolau Maquiavel
(1469 -1527) ou, mais recentemente de John Keegan (1934-2012) ou Henry
Mintzberg.
Se olharmos para o mundo do desporto, Leon
Teodorescu, com o trabalho “Problemas do Treino nos Jogos Desportivos
Colectivos” publicado em 1957 começou a tratar as questões relativas à
organização do jogo e Friedrich Mahlo em 1969 com a publicação d’ “O Ato
Tático em Jogo” introduziu, do ponto de vista teórico, a dimensão
tática na análise do jogo. Em termos mundiais, estas obras inauguram o
pensamento dos treinadores para além do ensino e do treino do gesto
técnico. No que diz respeito ao futebol, em Portugal, Adriano Peixoto
editou em 1947 “O Futebol Português e o Sistema de Herbert Chapman” e,
em 1965, “As Grandes Táticas do Futebol”. Cândido Oliveira (1897-1958)em
1947 publicou “Os Segredos do Futebol: Técnica de Ensino, Aprendizagem e
Treino, Tática de Jogo” e Augusto Sabbo (1887-1971), em 1948, uma obra
de 321 páginas, intitulada “Estratégia e Método Base do Futebol
Associativo Científico” que, pelo seu rigor de análise circunstanciado à
cultura de um determinado tempo, marcou uma época. Neste livro que
devia ser de leitura obrigatória para qualquer treinador Augusto Sabbo
faz a rutura com aquilo a que então se designava por “futebol arte” e
avança com um novo paradigma o do “futebol científico”.
Na
perspetiva de Jean-Paul Charnay diremos que, enquanto fenómeno mental, a
estratégia é suscetível de ser utilizada num grande número de domínios e
de comportamentos. Por isso, existe todo um conhecimento adquirido e
sistematizado ao longo dos séculos da história da humanidade que, só por
ingenuidade ou ignorância, pode ser dispensado por todos aqueles que se
dedicam à profissão de treinadores das mais diversas modalidades
desportivas em especial o futebol que, do ponto de vista social,
económico e político, supera todas as outras. Porque, o pensamento
estratégico, no abstrato da oposição das partes, na agonística do jogo e
na dialética de vontades, abre um vasto campo de reflexão que deve
suportar o processo de tomada de decisão nas suas dimensões política e
técnica no âmbito do desporto em geral e do futebol em particular.
Quer
dizer, o pensamento estratégico antecede em tempo e oportunidade o
sistema de jogo enquanto conjunto tático de modelos (p/ex. no futebol:
4.4.2; 4.3.3; 4.2.3.1; etc.) que, em interação dinâmica, estruturam e
dão um sentido de finalização à operação da equipa. Para além destas
configurações táticas que, muitas vezes, não passam de uma influência da
moda, há muitos jogos e campeonatos perdidos por completa desorientação
do pensamento estratégico dos treinadores.
Os campeonatos já
não se jogam como outrora na ludicidade de uns desafios que serviam para
entreter as massas durante os fins-de-semana de modo a retemperar-lhes
as forças para mais uma semana de trabalho. Hoje, os resultados
desportivos estão intimamente ligados a resultados económicos, sociais e
políticos que ultrapassam a vida das equipas e dos clubes. Ora, quando
os resultados se tornam determinantes em sectores da vida económica,
social e política que transcendem o próprio clube, acabam, também, por
alterar a lógica do jogo.
E se a lógica do jogo se altera,
porque mais vale jogar mal e ganhar do que jogar bem e perder, para além
do entusiasmo dos adeptos, o comportamento não só dos treinadores como
dos próprios dirigentes deixa de poder ser igual ao do passado em que os
interesses envolvidos não iam muito para além do divertimento dos jogos
do campeonato, sem consequências para além do resultado e da posição
mais ou menos honrosa da equipa na tabela classificativa.
Assim
sendo, a arte do treinador, que se traduz na sua atitude estratégica
relativamente à preparação de em cada jogo em particular e no campeonato
em geral, está transformada numa questão fundamental na organização da
vitória que determina a vida das equipas, dos clubes, das regiões e dos
próprios países. Quer dizer, na dialética de confronto de cada jogo em
particular e do campeonato em geral, o treinador, passou a ser uma peça
fundamental na medida em que as consequências das suas decisões
ultrapassam as circunstâncias do próprio jogo.
Hoje, é
reconhecido que os conhecimentos provenientes da dialética de pensamento
da “arte da guerra” se aplicam aos mais diversos ambientes agónicos
onde se confrontam diferentes vontades. E assim é porque, por via de
regra, este tipo de ambientes são de grande turbulência em que nada é
tido como certo pelo que o acaso espreita a qualquer momento. Para
caracterizar ambientes deste tipo, os militares americanos utilizam o
acrónimo VICA (na língua inglesa é VUCA) para os descreverem. O acrónimo
significa:
• Volatilidade;
• Incerteza;
• Complexidade;
• Ambiguidade.
A vermos bem, os treinadores são obrigados a trabalhar em ambientes:
• Voláteis porque mudam de forma, fácil e frequentemente;
• Incertos porque desencadeiam um estado de dúvida permanente;
• Complexos porque as variáveis em equação são de difícil apreensão;
• Ambíguos porque sugerem caminhos opostos para a resolução do mesmo problema.
Nestas
circunstâncias, dominar os fundamentos da estratégia é uma questão de
vida ou de morte para qualquer treinador na medida em que pode
estabelecer a diferença entre a vitória e a derrota da sua equipa.
Repare-se
que existem dezasseis, dezoito ou vinte equipas a disputarem as
primeiras ligas europeias, mas só uma pode ser campeã. Os interesses em
disputa são enormes, não sendo sequer possível, qualquer estratégia de
cooperação que vá muito para além do “fair play financeiro” que se tem
revelado pouco útil. Como tal, sem qualquer outro objetivo que não seja
ganhar, os clubes das mais diversas ligas lutam entre si a fim de
preservarem a própria existência:
• Em primeiro lugar, dentro dos recintos desportivos pelos resultados desportivos;
• Em segundo lugar, fora dos recintos desportivos pelos resultados financeiros.
Assim,
a competição assume um padrão de violência extremamente acentuado na
medida em que os clubes, ao contrário daquilo que acontecia ao tempo em
que os aspetos económicos e financeiros não dominavam os campeonatos, já
não competem entre si pelo prazer da prática desportiva mas pela
própria sobrevivência desportiva e económica.
Em conformidade,
em muitas circunstâncias, a violência competitiva disparou para níveis
inaceitáveis na medida em que põe em causa a própria existência do jogo e
do campeonato. Em consequência o futebol vive na necessidade de gerir
um paradoxo de extraordinária complexidade: por um lado, a violência que
anima o jogo não pode disparar para níveis incontroláveis sob pena do
futebol deixar de ser uma atividade educativa, económica, política e
social, por outro lado, qualquer tentativa de erradicar a violência
subjacente ao jogo de futebol acabará por o desligar do poder profundo
que sustenta o interesse dos adeptos.
Por isso, do ponto de vista do pensamento estratégico dos treinadores, o futebol moderno:
• Obriga a uma adaptação acelerada às mudanças que ocorrem num ambiente agónico em transformação constante;
•
Exige um conhecimento novo que já não é só oriundo da experiência
prática mas dos dados mais recentes da investigação histórica, social e
científica;
• Requer uma capacidade quase sobre-humana para manter o
equilíbrio emocional no confronto de vontades que, semana após semana,
acontece ao longo de uma época;
• Mobiliza a comunicação social que quanto mais o ambiente arde mais ela lhe atira com gasolina;
•
Desafia a racionalidade quando se projeta na sociedade ao mobilizar
centenas de milhares de apaniguados, tal horda incontrolável que, de um
momento para o outro, crucifica o treinador.
Como referiu
Friedrich Nietzsche (1844-1900) “… é cómodo acreditar naquilo que nos
consola. Mais difícil é perseguir a verdade. Quanta verdade são capazes
de suportar?” Quanta verdade são os treinadores de futebol capazes de
suportar? (a continuar)
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana
IN "A BOLA"
12/03/15
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